No futuro, quando os arqueólogos estiverem andando sobre as ruas de Uruguaiana, com suas roupas plásticas amarelas cheias de proteção UV e seus capacetes com respiradores, de longe, para um observador desavisado, eles lembrarão os antigos escafandristas, caminhando lentos e mergulhando no ar seco e quente da Fronteira Oeste esquecida.
Eles chegarão sem pressa. Sempre muito analistas, os arqueólogos escolherão como ponto de pesquisa uma coxilha elevada, um descampado onde hoje fica o bairro Cabo Luiz Quevedo, no final da rua de mesmo nome, lugar conhecido por toda a cidade como o Cemitério Senhora Sant’Ana. A elevação estará coberta por um pasto amarelado e ralo e terá duas árvores secas nas extremidades.
Uma outra equipe de arqueólogos seguirá andando na região onde é o centro da cidade, perto da Praça do Barão, em busca de resquícios de estátuas e outras estruturas arquitetônicas, desde que contenham matéria suficiente para que possam ser datadas.
Uma terceira equipe vasculhará no leito do rio, na verdade, naquilo que sobrou do rio Uruguai, que já vai estar morto há centenas de anos. O antes majestoso rio Uruguai, agora é um corpo morto e desidratado, nele, de longe em longe, o máximo que se encontra de lembrança de seu movimento são algumas áreas com água verde e contaminada.
Do alto, o rio Uruguai parecerá sinuosamente marrom, serpenteando como uma artéria seca, rasgando o pampa gaúcho como uma ferida. E de perto será um doloroso solo seco, feito com torrões rachados de terra e pedras queimadas pelo sol.
No descampado da coxilha, depois de escavarem por algumas horas, a equipe de arqueólogos vai andar na direção do rio e me encontrará sobre um pedaço ressecado de arenito e envolto por uma terra preta, bem na margem esquerda do Uruguai. Meu corpo estará deitado e espaçado naquilo que me tornei. O certo é que os arqueólogos me encontrarão sem maior pretensão, escavarão esperando, quem sabe, encontrar um braço ou um pedaço de fêmur, coisa habitual nas escavações dos últimos anos, mas para surpresa de todos, eles vão me encontrar em corpo completo e, por isso, a pesquisa terminará enquadrada como um dos grandes feitos da ciência.
No futuro, por óbvio, a minha descoberta acontecerá numa tarde quente, lá por meados de dezembro, perto da hora em que hoje termina o programa Sala de Redação. Uruguaiana, como todos sabemos, em dezembro sempre foi muito quente, tanto que até a água do Uruguai fica morna e convida qualquer pessoa para um mergulho ou passeio. Mas no futuro, Uruguaiana será ainda mais quente. Na sombra do Cerro do Jarau, os arqueólogos do futuro já mediram 63 ° C. Foi aproximadamente com essa temperatura que uma cientista, muito atenta, demonstrou aos colegas que o solo daquele lugar tão remoto seria propício para uma tentativa de prospecção. Ao que parecia em sua análise, pelos instrumentos de medição, o solo no final da rua Cabo Luiz Quevedo era cheio de sais minerais, como potássio, magnésio, e sobretudo, muito, mas muito cálcio.
A equipe de arqueólogos retirou os equipamentos e os materiais de segurança do veículo. Encontraram-me por acaso, contando com ajuda de um robô, um ser metálico que se movia pela pampa gaúcha, como um quero-quero contra o vento, sem sequer tocar no chão ele foi levando a equipe na direção do rio Uruguai. O equipamento, uma inovação nas pesquisas sobre o passado, dispunha de inteligência artificial rebuscada, ele era capaz de, usando um scanner, verificar o que existia no solo até a profundidade de vinte metros. No entanto, ele não identificava o tamanho do alvo, apenas sua localização, devido às interferências da radiação do solo. Diante dessa imprecisão, muitas vezes as equipes de arqueólogos escavavam vários metros de profundidade para encontrar uma simples mandíbula canina e quebrada. Era frustrante. O mesmo robô sabia dizer também qual era a temporalidade estimada para cada artefato encontrado, com o simples toque de um sensor de laser.
Quando eles me encontraram, eu estava a cerca de 3 metros de profundidade. Os arqueólogos demonstraram entusiasmo quando começaram a desenterrar minha mão.
Primeiro, encontraram uma pontinha de mim, começando pela mão direita, pela ponta sem unha do dedo mínimo, eles manipularam cuidadosamente o pequeno osso, que foi desenterrado como se fosse um diamante, aspirado, sanitizado e guardado numa caixa de metal brilhante.
Lentamente, como se tratassem de um quebra-cabeças ao contrário, fui sendo desmontado em meio à terra pueril da cidade em que vivi. Uruguaiana não tinha mais prédios, igrejas, farmácias ou casas, nem mesmo a Presidente Vargas ou a Quinze de novembro, não tinha nada. Por sinal, a única coisa que se mantinha em pé era a ponte internacional, se bem verdade, apenas um pedaço dela, a parte argentina, visto que a brasileira caiu durante uma grande enxente. No horizonte, o sol ficava escondido sempre em um amarelado constante de nuvens de poeira.
Ah, Uruguaiana, como ela tinha um pôr do sol lindo! Lembrei de todas as vezes em que fui com minha família ficar nas margens do rio, assistindo o término de mais um dia. Mas agora a minha amada cidade era apenas um deserto seco, quase sem pássaros e, definitivamente, nenhum capincho. De quando em quando, via-se uns poucos arbustos verdes e uns tantos espinilhos, sinal de que o planeta aos poucos estava se reconstruindo. Para os arqueólgos, Uruguaina tinha se transformado num grande borrão no radar que indicava um baixo sinal de radiação. Com todo o cuidado, os arqueólogos se revezaram e retiraram os demais ossos do que um dia foi a sustentação de meu corpo, falanges, metacarpos, rádio, úmero.
Minhas costelas, ainda em fila, permaneciam ilesas, guiadas pelas vértebras de minha coluna, já em pedaços irreconciliáveis, meus ossos das costelas se exibiram aos pares, como que se ainda guarnecessem dois pulmões imaginários. Mas para os arqueólogos, desprovidos de sensibilidade imaginativa ou tecnologia reconstrutiva capaz de refazer os cheiros, não sobrou nenhum resto do ar que respirei naquela tarde em que morri, lembro-me do ar ter um leve cheiro de mel. No lugar dos pulmões também não ficou nada dos diferentes odores que senti naquela última pescaria que fiz com meus amigos, em uma barragem à beira de uma lavoura de arroz para as bandas do Passo da Cruz.
Nunca souberam os arqueólogos do cheiro dos fogões à lenha e das lareiras anunciando o inverno. Se eles pudessem encontrar algum resquício do cheiro doce da manjerona fervendo no caldo de feijão que cozinhei numa segunda-feira, ou do odor dominical da gordura do churrasco derretendo ao menor contato com a brasa e tomando conta de todo o meu bairro, certamente ficariam famintos. Se os arqueólogos pudessem encontrar no lugar vazio dos meus pulmões o melhor dos perfumes, o melhor deles, o cheiro da minha esposa depois do banho, deitada ao meu lado no final de um dia cansativo de trabalho. Mas não restou nada de meus pulmões que ajudassem os arqueólogos à supor como eu vivi.
Enquanto me escavavam, o vento quente do minuano radioativo ainda era igual. E o minuano, em cada sopro, parecia tentar auxiliar o trabalho dos arqueólogos, empurrando para longe o pó da escavação enquanto eu ia surgindo naquilo que me sobrou.
Na minha mão esquerda, desenterrada meticulosamente por uma jovem estudante, um dos pesquisadores, eufórico, encontrou minha aliança. Os arqueólogos há anos teorizavam os motivos daquele artefato ser encontrado seguidamente em alguns pedaços humanos, sempre na mão esquerda. Uma das teorias mais aceitas era de que aquilo seria uma forma dos humanos do passado representarem pertencimento à uma tribo ou grupo.
Coordenava o grupo de pesquisa um arqueólogo muito famoso, recém chegado das colônias de Marte – por sinal, lugar que há muito já era um belo planeta verde e com atmosfera respirável. E ao saber do achado, o coordenador dos arqueólogos, efusivamente, defendeu que estes adereços usados nas mãos esquerdas eram como os humanos do passado representavam o amor.
O problema é que no futuro, os homens e mulheres já não amavam mais, seus cérebros extremamente objetivos e racionais não tinham tempo à perder com esse tipo de questão. Assim, o amor era incompreendido, tanto que alguns arqueólogos mais conservadores preferiam aceitar a explicação mais simples, de que a aliança era usada no dedo anelar da mão esquerda apenas por estética.
As minhas vértebras, guardadas uma após a outra, foram colocadas em pequenos invólucros plásticos. Meu corpo, ou melhor, meu esqueleto, foi particionado cientificamente e virou uma série de hipóteses entre teses distintas, expostas durante o jantar, ao término do primeiro dia de escavação. Na manhã seguinte, minha clavícula, escápula e esterno também seguiram pelo mesmo caminho das outras partes: foram desenterrados, limpos, desinfetados, etiquetados e encaixotados. Então, como se tivessem chegado na melhor parte de um menu que poucos sabem degustar, os arqueólogos começaram a retirar da terra o meu crânio.
Duas pequenas mãos com luvas amarelas abraçaram e tiraram cuidadosamente a minha cabeça do chão pampeano.
Surgir num crânio sem rosto foi estranho e me ver sem meus olhos, sem meu nariz, sem meus lábios e orelhas foi desconstrutivo. E, embora fosse eu, parecia que não era mais, ainda assim, eu era.
Dentro do fosso amarelado do meu crânio, na cavidade cerebral, não havia nada. Curiosamente, era ali que ficava tudo o que um dia fui ou quis ser, cada ideia em que acreditei, todas as alegrias e tristezas que vivi, os rostos das pessoas que amei. Em meu crânio vazio, minhas memórias de vida agora eram fantasmas transformados em novas teorias pelos pesquisadores.
Dentro do meu crânio velho e seco, meu cérebro foi trocado por um pó cinza, misturado com terra e areia. A minha cabeça foi girada e, tal qual uma ampulheta, o que havia do meu cérebro escorreu numa areia cinza pelas minhas fossas nasais. Na parte frontal do crânio, um cientista encontrou uma pequena marca de afundamento, o fragmento do dia em que bati a testa no portão de casa. Aos colegas, o arqueólogo disse que aquela deveria ter sido a causa de minha morte. Se ele soubesse que não morri naquele dia, que após a batida, num domingo de tarde, eu levantei e fui beber uma cerveja, como analgésico para o galo na testa.
Os arqueólogos olharam nas órbitas onde ficavam meus olhos. Com cuidado, examinaram cada buraco. Assim como aconteceu no vão das minhas costelas, não acharam nada. Nem resto de filme, novela ou teatro, quanto menos alguns minutos dos jogos do Grêmio e Inter. Também não acharam restos de nenhuma imagem da minha filha, aos três anos, pendurada na minha garupa. Teriam se divertido.
Um arqueólogo tentou explorar o interior do meu crânio com uma lanterna, pela órbita de meu olho esquerdo, que era o meu melhor olho para a leitura, ele não enxergou o show do Fito Paez que guardei ali, na órbita do olho direito ele não conseguiu ver os lindos olhos brilhantes do meu filho, de mãos dadas comigo diante do imponente pôr do sol do rio Uruguai. Tenho certeza que ficariam emocionados. Na minha cabeça os cientistas encontraram apenas o vácuo encefálico dos tecidos desaparecidos. Limpa, etiquetada, sanitizada, ela também foi para a caixa.
Trouxeram o robô novamente, eles queriam informações sobre o “quando”. Pois o “quando” sempre é importante, o quando explica muitas vezes o “por quê”.
Com seu laser, o robô tentou estimar o meu tempo no mundo, chutou que era algo entre 2,5 e 2,6 mil anos. Foi uma festa entre os arqueólogos! Eles se abraçavam, e mesmo extremamente racionais, pareciam visivelmente emocionados.
Meus ossos, encaixotados e limpos, foram levados até o veículo em que a equipe andava, um tipo de de nave com formato cilíndrico e que levitava na altura de um capim santa fé acima do solo. Fui para um encontro póstumo com outros que, como eu, também estavam mortos, numa junção de extremos: o passado e o futuro.
Eu era o único resquício de vida humana com mais de dois mil anos desenterrado no Planeta Terra em mais de cento e trinta anos de pesquisas. E vejam que já fazia mais de mil anos que os humanos haviam matado nosso planeta. Os que possuíam poder, dinheiro ou conhecimento fugiram para as estações espaciais antes do fim, com os anos, acabaram abandonando de vez a ideia de retornar para a Terra e saíram vagando em diáspora pelo cosmos.
Fui posto na vitrine de um museu gigante, colocaram-me perfeitamente montado, as partes das minhas vértebras que se desfizeram, foram impressas novamente. Eu estava ao lado de outros dois esqueletos, um sem partes das pernas e outro sem cabeça, mas que, definitivamente, não eram humanos. Um deles, em função dos dentes, creio, era de um capincho, o outro, pelo porte, certamente era de cavalo.
Na tela que me identificava ao visitante do museu, chamavam-me de “homem pampeano pré crise-climática”.
Na minha frente, uma vitrine com vários outros esqueletos se estendia até o final do corredor, todos catalogados: Tinha o “homem pré terceira guerra nuclear”, homem pós-aquecimento”, “homem pós-radiação solar”, “homem pós-derretimento”, “homem pós-inundação”, “homem pós-última guerra nuclear”, “homem pós-mutações”, era uma fila de uns vinte, todos expostos com desenhos tridimensionais que tentavam demonstrar como eles eram quando tinham suas carnes. No desenho que ficava na minha vitrine, eu parecia com um Lima Duarte enrolado em peles de capincho. Na verdade, eu não me lembro de ter morrido tão velho.
Com certa dificuldade, consegui mover os dedos do meu pé. Meu braço esquerdo parecia dormente. Respirei profundamente, foi agradável sentir o ar gelado nos pulmões, foi humanizante sentir o cheiro da minha esposa e o toque suave do meu travesseiro. Olhei no relógio, faltavam dez minutos para às quatro da manhã. Alice, minha filha menor, tossia no quarto dela, estava bem frio, uns 05 graus, fui até lá, ela estava destapada, trouxe a pequena para minha cama. Em seguida, apareceu na porta do meu quarto o Gabo, meu filho mais velho, indiquei com a cabeça que ele também poderia vir para a cama, o guri se deitou rapidamente e foi se abraçando na mãe.
Acomodei a Alice para o meu braço direito, com o esquerdo fiz um cafuné na Andreia e cobri o Gabo com a ponta do edredom. Depois, fiquei tão quieto que pude sentir toda a calma do mundo, consegui ouvir meu coração batendo vivo e os cães latindo para as bandas do cemitério. Distante, senti o rio Uruguai pulsando forte, como uma artéria firme, escorrendo vida pelo pampa.
Senti-me confortável no perfume da minha esposa. Enchi ao máximo o que pude os meus pulmões. Demorei um pouco para dormir de novo. O que me deixou angustiado naquele estranho sonho não foi a ideia de encontrarem meus ossos na margem do rio Uruguai, essa ideia até que me agrada. O que me intristeceu foi a sensação do rio estar morto e seco. Que coisa triste, uma espécie matar um planeta. Fiquei pensando no aquecimento global e em tudo que está por vir. Dormi sentindo pena daqueles pobres arqueólogos do futuro, que nunca viram um pôr do sol na beira do Uruguai.
Roger Baigorra Machado é formado em História e tem Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia
Lindo texto, chê! Achei que, em algum momento, os arqueólogos do futuro também encontrariam uma boteja de vidro marrom ao lado da tua mão direita, com capacidade para um litro (unidade dum obsoleto sistema métrico terrestre), quiçá intacta sob crostas de barro seco, mas certamente vazia. Abraço!