A SAGRAÇÃO DO OUTONO Em círculos concêntricos de luz difusa o outono se instala como um farol distante na neblina os primeiros frios os primeiros medos da infância Os halos e hálitos que chegam já não lembram que houve verão e consagram em sombra e luz os negativos de uma dobra de sonho na esquina deserta na madrugada na ausência do jasmim explícito exposto ao céu no pátio deserto entregue à lua As nuvens se desdobram por entre os ventos e a massa pesada se retraduz em frio, em campo O outono é chegado já não há mais tempo (ano veloz outono adentro). TRANSCENDÊNCIA Você falava faca Fogo e desafio Seu fio me feria. Agora transgrido O ferino da língua e do corte E embora haja faca e fio Já não me fere o mesmo toque As palavras que passo são outras Os sons que sinto são suporte De um fado mais longínquo Sem faca, fogo ou morte. DESPISTE Estou amargo como fel Áspera ânsia me consome Enquanto a desesperança me trai Tudo é abandono na insônia Estou destilando dores Entre girassóis esquecidos Nada me conforma Enquanto esqueço o que não consigo O âmago dos deuses me corrói Enquanto corro pelos corredores Procurando sol O irremediável me domina O disforme desejo me tortura A clareza não voltará Nunca será cedo Jamais haverá manhãs As planícies se evolaram Estou amargo como losna E embora queira o mel Sei que de doce já basta a vida. SOCIOPOEMA Nas gretas da terra incerta que desbravavam nossos antepassados carregando nas entranhas de cada gesto o indigesto gerir de cada dúvida e nas malhas do arado diverso de suas tardes de domingo em calmaria não teriam gerado em cada ato um pouco de nossa raiz arisca? E em cada mulher daqueles altiplanos acostumadas com o vento que vergastava suas sóbrias faces e às sombras de suas casas e suas lides não haveria em cada uma um pouco de nosso olhar perdido no horizonte parco de nossas cidades? Assim, quando o vento vem de campos longínquos invadindo com seus cheiros a cidade nos abandonamos à sua passagem como nos abandonávamos ao colo de nossos avós e mergulhamos na saudade do que não sabemos distantes que estamos do que éramos distantes que estamos de nós mesmos. Leia mais em: Clique na imagem para rolar paginação. GÉRSON WERLANG: músico e escritor, Gérson Werlang nasceu em Santa Rosa-RS, de onde saiu ainda criança, se fixando em Santa Maria. Possui diversos trabalhos musicais lançados, tanto em carreira solo como com sua banda, a Poços & Nuvens. É graduado em Música pela UFSM, fez mestrado (em Música) nos EUA, onde residiu no período de estudos, e possui doutorado em Letras pela UFSM. Publicou A Música na obra de Erico Verissimo (ensaio, 2011), Wilde em Berneval (romance, 2020), Outros Outonos (poesia, 2022) e Rita Lee & Tutti Frutti – Santa Maria, Maio de 1978 (crônica, 2023). Está lançando dois novos livros, Meu primeiro livro – a gênese de A Ilha do Tesouro, uma tradução do escritor escocês Robert Louis Stevenson; e Café – Breve Relato do Ano da Enchente (romance). É professor do Departamento de Música da UFSM e do Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma instituição. Please follow and like us: Comente comentários
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