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Foto de Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles. Negra com o filho, Salvador, 1884.

PEDRO, O PRIMEIRO PEÃO DA ESTÂNCIA DO ARVOREDO*. por Roger Baigorra Machado

Mariana estava parada na entrada do galpão já havia alguns minutos, no semblante daquela manhã úmida, o seu rosto carregava uns quarenta anos de idade, no entanto, somente em dezembro é que ela completaria oito anos de vida. Os grandes olhos verdes da menina, ainda atordoados pela noite mal dormida em meio aos mosquitos, contrastavam com o cinza da fumaça do fogo de chão que saía por uma das janelas do galpão, um risco dançante que ia surgindo pela madeira de uma janela quebrada que ficava eternamente entreaberta. Era setembro de 1780.

Os longos cabelos castanhos de Mariana, perfeitamente escovados, escorriam cansados por sobre os pequenos e frágeis ombros, recobrindo os babados brancos costurados nas laterais das ombreiras do velho vestido azul, vestimenta que sua mãe fez das sobras de um corte de linho inglês que adquiriu ainda no Rio de Janeiro. Mariana tinha nas mãos uma pequena cesta com alguns ovos de galinha cozidos e um grande pedaço de pão feito em casa.

Um suspiro. Mais outro. Se existia algo que irritava Mariana, era ter de esperar por alguém ou por qualquer coisa que não dependesse de uma ação exclusivamente sua, assim, paciência, definitivamente, não era uma de suas virtudes.

– Martin! Martin! Depois de um último suspirar, Mariana encheu os pulmões de ar gelado e chamou pela centésima e última vez:

– Martin!!!

O grito agudo deu resultado. Enfim, o contorno de uma pessoa foi se desenhando no meio da serração. Era um corpo pequeno, devia ter pouco mais de um metro e cinquenta de altura. Andava com dificuldade, movia-se resvalando por sobre o chão barrento, tramando uma perna na outra. O vulto resmungava num praguejar incessante, era alguma coisa que envolvia as bostas das vacas e o barro por onde ele andava.

Aos poucos o desenho fantasmagórico foi ganhando cores e formas definitivas, foi virando gente. E era ele, Martin. O pequeno Martin, irmão de Mariana. E o guri retornava da mangueira, puxando um pé depois do outro do atoladouro do barro. O menino tinha 12 anos de idade e os cabelos compridos, andava de pés descalços e vestia uma bombacha cinza e levemente puída nas laterais, certamente, fruto da fricção diária do metal do tacho contra a sua perna franzina e das artes da infância campesina.

Martin trazia um tacho de leite levemente amassado, certamente, pelos tantos tombos passados. Segurando o peso com as duas mãos, o menino vinha com os dedos apertados pela alça torta do velho balde de metal, num esforço para além da sua idade e tamanho, coisa que era facilmente perceptível por qualquer observador. Pelo caminho, conforme se aproximava do galpão, Martin deixava para trás um rastro branco no chão, pois o tacho, de tão cheio, respigava leite para todos os lados.

A sinfonia dos berros dos terneiros rompia o silêncio da estância e denunciava que já era a hora de soltá-los para que retornassem às tetas das vacas. O dia mal havia clareado e a rotina da estância já tomava conta de toda a família.

–  Mariana, minha irmã, qual o motivo de tanta gritaria? Perguntou Martin, enquanto largava o tacho de leite no chão e retirava um pedaço de barro que tinha se grudado em sua testa.

– A mãe pediu para tu levares esses ovos e esse pão lá para o Nhô Pedro. Ele está adoentado ainda. O pai disse que ele está bem magro, que já faz dias que não come direito o pobre homem.

– Sempre eu! – Exclamou o menino em tom de reprovação diante do mandado recebido – Me dê isso aqui, diacho! E cadê o Chico? Ele está sempre lá no Nhô Pedro e nunca leva nada para ele, sempre sou eu! Sempre eu que tenho que ir. Nunca vi uma estância ter um escravo que não trabalha!

– Irmão, não seja injusto, é que o Chico saiu com o nosso pai. Foi ele, o pai e o Dom Baéz, saíram faz pouco. Foram ver um boi que se atolou lá no banhado perto do Arroio do Degolado.

Martin levou o tacho de leite até dentro de casa, na volta pegou o pão e os ovos e, com cara de contrariado, partiu colocando a cesta debaixo do braço. Foi-se desvanecendo por entre o arvoredo que se estendia pelo lado da casa grande.

O arvoredo era bastante extenso, tinha árvores frutíferas de pequeno porte, algumas eram mudas ainda novas, bergamoteiras, limoeiros e laranjeiras, misturadas com outras árvores nativas, como guabijus, araçás, butiazeiros e pitangueiras. Um tapete de grama rala se estendia por debaixo dos galhos. No arvoredo havia muita sombra e o lugar estava sempre cheio de pássaros que viviam a se deliciar com as bergamotas doces que coloriam os galhos das pequenas árvores.

O Nhô Pedro morava num pequeno casebre que ficava após o arvoredo, não mais que duzentos metros de distância. Lá ele não tinha nada além de paredes de barro e um teto de capim santa fé, uma cadeira de toco de canjerana e uns couros de boi e pelegos de ovelhas que ele usava como cama por sobre a armação de um catre. Martin chegou na porta, o velho homem estava sentado, cabelos brancos e corpo magro. Ao vê-lo, como recepção ao menino, deu um grande sorriso amarelado.

– Mas óia só, o Martinzinho! Entra menino, entra!

– Nhô Pedro, a mãe pediu pra entregar isso pro sinhô.

– Que é isso, sinhozinho! Eu não sou sinhô, não! Sinhô aqui é vosmecê que é filho do Nhô Henrique.

Pedro tinha um hábito antigo, coisa que vinha desde lá quando o pai de Martin, Henrique, era pequeno. Época em que habituou-se a chamá-lo pelo apelido de “Nhô Henrique”, um diminutivo da palavra sinhô, que por sua vez já era uma adaptação de “senhor”. Com o passar dos anos, Henrique, como forma de retribuir a brincadeira, começou a chamar Pedro por “Nhô Pedro”.

– O pai me disse, Nhô Pedro, que é para te tratarmos sempre com respeito e com educação. Falou de forma enfática o menino Martin. – Ele me disse que vassuncê segurou ele no colo, que o Nhô Pedro conhece ele desde que ele nasceu. E eu pretendo não desobedecer o meu pai e vou seguir tratando o Nhô com educação.

– Ara! Eu não preciso de educação não, sinhozinho. Careço não! Eu já sô muito bem tratado aqui na estância do seu pai. Sabe, Martinzinho? Óia! Óia aqui pra isso – disse Pedro, gesticulando com as mãos e indicando para o menino o local onde estava. — Eu tenho uma casa, tenho essa comida, não fico preso em corrente e nem apanho com relho. E eu careço de mais respeito que isso? Pedro finaliza sua fala com um novo sorriso cheio de dentes, dando, em seguida, uma grande mordida no pedaço de pão que o menino lhe trouxe.

Pedro foi o primeiro peão da estância, mesmo antes sequer da Estância do Arvoredo existir.

Pedro não era brasileiro. E, talvez, ali no meio do campo, depois de tantos anos, já nem soubesse mais o que era. Já fazia tempo que mal lembrava das coisas da sua vida. Se lhe perguntassem a idade, não saberia responder, aos setenta anos, ele tinha a impressão de ter vivido mais de cem. Tinha vezes que esquecia até mesmo de seu verdadeiro nome. O nome dos tempos da infância. E foi numa tarde de lida com o gado, com o corpo exausto, que o vento gelado soprou uma súplica contra o pasto alto. O velho homem negro parou e desceu do cavalo. Ele teve a impressão de ter ouvido ele, o seu nome de infância, seu nome dito pelo vento: Shaka.

Shaka Mbandi, esse era seu nome. Shaka era uma parte de um nome maior, herança que dividiu com o seu irmão mais velho, um guerreiro Zulu. Os irmãos eram uma homenagem que foi dada ao grande herói e rei do povo nguni, o mítico Shaka Zulu.

Pedro veio de longe, ele cruzou o oceano e chegou de barco ao Brasil. Viajou a bordo do navio negreiro “São João Bautista”, no que seria a última viagem do lendário navio negreiro. Pedro desembarcou na cidade de Salvador aos quinze anos de idade. Quando chegou, foi retirado do navio aos golpes de relho, mal saiu da embarcação, sentiu a luz do sol cegar suas vistas. Tudo era um grande clarão. Seus olhos, que estavam habituados ao inferno salgado do mar e aos meses de escuridão dos porões do São João Bautista, demoraram um pouco para reconhecer as cores e as formas ao redor. Na escuridão dos porões do barco, o jovem angolano padeceu num martírio vivido em mortes corriqueiras e alimentado em desnutrição com comidas estragadas sobre fezes e urina.

Assim que saiu do navio negreiro, Pedro sentiu seus olhos se habituando lentamente ao mundo, em seguida, encheu de ar limpo os pulmões, o ar parecia doce, era diferente, parecia com vida. Ele tinha as mãos e os pés acorrentados quando da descida pela rampa fina. Poucos minutos depois de sair do barco, Pedro sentiu os caminhos do suor escorrendo por todo o corpo, o calor de uma quente e habitual tarde do verão brasileiro. Todos os homens e mulheres que foram jogados nos porões do navio eram do mesmo lugar, vinham de Angola.

Shaka Mbandi, antes de embarcar para o Brasil, foi batizado pelos cristãos como Pedro. E mesmo tendo o nome de Pedro, ele seguia sendo um homem da tribo Ambundu. Pedro, bisneto da grande chefe tribal Mwene Nzinga Mbandi, rainha de Matamba. Pedro, filho de Ginga Mbandi, líder dos Ambundu, irmão do grande guerreiro Zulu Mbandi e da jovem Mwana Mbandi. Pedro, um dos tantos ambundus que ingressaram na adolescência segurando lanças e combatendo os exércitos portugueses.

Mas no novo mundo, Shaka Mbandi tinha virado Pedro, apenas mais um negro angolano que pisava de pés descalços no chão brasileiro, depois de 60 dias trancado num porão de navio.  Um homem sequestrado do seu mundo.

Quando foi capturado na África, embora jovem, Pedro já dominava a língua do invasor, sabia compreender e falar com desenvoltura a língua portuguesa. Por isso, e, acima de tudo, sempre que podia, era um diplomata. Conseguia se aproximar dos brancos através da palavra, sabia usar da submissão e do idioma português como poucos escravos. No entanto, a sua pretensa empatia com os brancos era insuficiente para evitar as maldades e as injustiças que o cercavam cotidianamente. Desde o embarque, por vezes, Pedro era usado como um elo de ligação entre os dominadores e os dominados, destoando, em muito, do silêncio e da fúria agressiva de seu irmão, Zulu, que no dia do embarque, precisou ser espancado e foi jogado quase desacordado num dos porões do navio negreiro.

No Brasil, cerca de dois dias após a saída do São João Bautista, Pedro não fazia ideia de onde estava seu irmão, haviam sido separados ainda dentro do navio, evento que aconteceu depois que Zulu tentou derrubar um homem que negou água para dois escravos doentes. Por sinal, enquanto caminhava pelas ruas de Salvador, durante alguns minutos, Pedro quase esqueceu de tudo que tinha passado, até do próprio irmão, mãe e irmã. Ele estava envolvido pelo novo mundo e pelos seus odores, os estranhos seres, havia um tipo diferente de vida no burburinho das risadas e no barulho das patas dos cavalos, até mesmo no latido dos cães pulguentos que se multiplicavam pelas ruas.

Os angolanos, conforme se locomoviam por Salvador, eram um misto de espanto e medo, uns, pareciam maravilhados pelos sons do Mercado São Joaquim, uma grande feira ao ar livre que ficava na região portuária da cidade. Outros escravos, seguiam com as expressões fechadas, como se estivessem ainda no porão do navio, na iminência de serem mortos a qualquer momento.

Conforme andavam, Pedro sentiu sob os pés o toque gelado das urinas humanas que umedeciam quase todas as ruas por onde passavam. Tinha vontade de pegar outro caminho, dobrar numa das tantas ruas, descobrir mais sobre esse novo lugar. Subir por uma daquelas pequenas e belas ruelas, andando sem correntes, sem grilhões.

Imaginava-se correndo, sorrindo, livre e de mãos dadas com Zacimbe. A realidade sempre retornava, sempre com ela, Zacimbe.

Na feira, todos foram colocados enfileirados, dividiam espaço com galinhas, vacas e cabritos. Junto com os animais, eram anunciados para venda por um homem magro e de bigodes longos. Havia mais de trinta negreiros, como eram conhecidos os traficantes de escravos. Divertiam-se barganhando e comercializando os humanos africanos na rua. O jovem Pedro estava enfileirado, com as costas contra uma parede de pedra, junto com a sua irmã mais nova, Mwana, seguido por uns jovens Bacongos. Era a fila dos escravos novos, jovens com dentes bons e boa força. Curiosamente, todos estavam desnutridos e com infecções. A mãe de Pedro, ainda mais magra, estava noutra fila, com outras cinquenta mulheres. Tinha a fila das crianças. A fila dos doentes. Tudo se deu muito rápido. Quase todos foram separados na feira. Alguns ficaram ali mesmo pela Bahia, enquanto outros foram levados para a região de Minas e São Paulo.

Um homem com roupas militares veio e parou na frente de Pedro, olhou as suas mãos, observou o branco dos olhos e abriu a sua boca para contar os dentes e buscar por feridas. Em seguida, apareceu o homem de bigodes e Pedro foi levado para uma rua lateral ao mercado e colocado com um grupo de escravos que estava do outro lado da rua. Todos homens, jovens e fortes que haviam sido selecionados para trabalhar nas lavouras de açúcar e tabaco.

Nem trinta segundos depois, o homem que tinha examinado Pedro, voltou e o retirou do grupo.

– Negro, disseram-me que tu fala português? Fala? Vamos, negro! Vamos, responda!

– Sim, sinhô, eu sei ouvi, falar e entender. Disse o jovem angolano, com o olhar submisso e a cabeça baixa. Pedro sabia perfeitamente se comportar diante dos brancos.

– Então vem comigo, negro. Vou te colocar nesse grupo aqui, com esses negros que vão para São Paulo. Hoje destes sorte, negrinho. Vais trabalhar como escravo de alguma casa grande.

Pedro foi levado por um outro homem, sendo puxado por uma corrente presa no pescoço. Andou cerca de mais vinte metros. Chegando ao novo grupo, Pedro olhou para as pessoas que estavam acorrentadas na sua frente, viu sua mãe e, mais uns metros para trás, também viu seu irmão Zulu. Sentiu uma alegria gigante e viu nos olhos dos dois a mesma imagem. Em seguida, sua mãe falou baixinho em kimbundu, a língua de sua tribo.:

– Shaka! Zulu! Vejam. Lá, olhem lá na frente. – Os dois filhos olharam para a mãe, que rapidamente fez um sinal com a cabeça indicando a ponta da fila. Era ela, Mwana.

Zulu, olhando para os dois irmãos, virou-se na direção da mãe e disse:

– Ubuntu! Eles estavam juntos, era só o que importava.

Na Estância do Arvoredo, Pedro que outrora foi um homem forte e destemido, agora havia se transformado num homem envelhecido, sentado sozinho no seu rancho de pau à pique, fazendo forças para lembrar do rosto das pessoas daquele dia em que se reuniu com seus parentes.

As lembranças eram como pinturas enfraquecidas, borrões numa parede, manchas que faziam sentido, ora, eram apenas vultos com rostos manchados. No entanto, ele lembrava com perfeição da menina de nome Zacimbe, a princesa dos Bacongos. Mesmo no terror de um navio negreiro, na iminência da morte e nos braços da dor, o amor segue sendo mais forte. E assim, Pedro se apaixonou pela jovem princesa. Por vezes, achava que ela também nutria algum sentimento por ele, seu olhar era hipnotizante, não havia como esquecer da sua beleza e de sua inteligência. Zacimbe tinha os cabelos longos e perfeitamente trançados, agarravam-se em sua cabeça como serpentes, indo até a nuca e, depois, voltavam como se fossem raios que se jogavam do céu, escorrendo em tranças finas pelos ombros. As belas pinturas de uma realeza já destruída, mesmo levemente apagadas, ainda se destacavam no seu rosto, adornando ainda mais seus belos olhos negros.

Porém, Pedro lembrava perfeitamente de algo que sempre se esforçou para esquecer.

Aconteceu numa noite em que o mar estava em calmaria, nenhum vento, o navio parecia até estar em terra firme. Subitamente, os movimentos da embarcação foram aumentando, primeiro, pequenas ondas contra o casco, em seguida o som do vento e os e a proa subindo e descendo. Entre os sons dos trovões, ele ouviu os gritos desesperados de uma mulher. Vinham de um andar acima de onde ele estava. Um escravo chamado Ngonga, que tinha sido levado até o convés para limpar os baldes de fezes, ao retornar para o porão do navio, relatou que Zacimbe estava sendo espancada e estuprada. Seus gritos, depois de um tempo, silenciaram, a princesa dos Bacongos foi violentada por mais de dez tripulantes do São João Bautista.

Na noite seguinte, amontoada num canto, espremida entre outras mulheres, Zacimbe ficou deitada sobre uma grande mancha de sangue.

Um homem branco que trazia milho cozido, ao se aproximar de Zacimbe, percebeu que seus olhos não se moviam. Ela morreu aos 14 anos de idade, foi jogada no mar por dois dos mesmos homens que a tinham estuprado. O sol já estava se pondo, o mar repousava numa calmaria. Zacimbe pareceu voar por um pequeno espaço de tempo, ela caiu na água de costas, bateu e foi ao fundo, quando voltou à tona, teve suas tranças abraçadas por leve ondulação que a levou para longe do navio, como se o mar tentasse afastá-la do São João Bautista. Em seguida vieram outros. Segurados pelas pernas e braços, os tripulantes jogaram no mar outros dezenove escravos, todos doentes. E quando seus corpos tocaram na água. Quando foram jogados na água, todos ainda estavam vivos.

No mar sereno e iluminado pelos últimos e amarelados raios de sol, via-se uma fila de corpos negros, libertos no meio do oceano.

E no meio da pampa gaúcha, diante do pequeno Martin, entre memórias e esquecimentos, Pedro repousava o que restava do seu espírito guerreiro, num corpo negro e cansado. Nas mãos, em tons mais claros, via-se os calos e os cortes dos anos de trabalho escravo. No peito preto, cicatrizada em pele esbranquiçada, Pedro trazia a marca de um sonho frustrado, o sonho de uma vida diferente: uma grande letra F. Era uma cicatriz tatuada na pele e na memória, a lembrança da sua única tentativa de fuga. “F de fujão”, foi assim que o sentenciou, num sorriso raivoso, um homem branco, segurando com prazer a vermelhidão de um ferro quente, antes de queimar a pele fina do peito de outro homem.

Pedro acompanhava a família de Martin desde há muito tempo, na verdade, desde o início. Pedro saiu de Salvador no mesmo dia em que foi vendido no Mercado São Joaquim. O cheiro de mar e de peixes nunca mais seria sentido pelo jovem angolano. Ele foi levado até a saída da cidade, onde estavam organizando um grande cordão de escravos de cerca de 700 pessoas. Os cordões de escravos eram a forma mais barata de como os brancos transportavam por terra os africanos que chegavam nos navios. Os escravos eram amarrados ou acorrentados, em seguida, eram postos em filas, pelas laterais, capatazes se revezavam com varas e relhos, fazendo com que todos andassem num determinado ritmo. O angolano foi colocado numa das várias filas de escravos que estavam acorrentados pelos pescoços, havia filas em que as correntes eram presas nos tornozelos, dificultando ainda mais a caminhada.

Aos mais próximos, Pedro contava que aquele cordão de escravos, junto com a viagem no São João Bautista, foi uma das experiências mais tristes e terríveis que ele viveu. Durante meses, centenas de pessoas acorrentadas umas às outras, deslocaram-se por terrenos quase intransponíveis, desertos verdes, caminhos montanhosos, cruzaram picadas no mato e atravessaram riachos profundos que engoliram muitas vidas. Pedro nunca esqueceu da forma como caminhou todos os dias, com os pés cortados e com larvas, ele andou quase sem parar, e suas pernas, magras e enfraquecidas, tremiam sem parar, em espasmos dolorosos na escuridão das noites. Durante os dias, Pedro teve de aprender a defecar e urinar enquanto andava, não era permitido parar. Ele comeu folhas, gafanhotos, restos estragados do que os capatazes lhe davam. Sentiu dores de estômago, teve diarréia, algumas vezes desejou a morte, mas desistiu sempre que Zulu o encarava com fúria, a necessária fúria da sobrevivência. No trajeto, viu muitos desistirem, pois não tinham um irmão a lhes impulsionar a vida. Pessoas que tinham nos olhos o vazio, um vácuo tão profundo de vida que nem lágrimas mais eram capazes de criar, e assim, morreram pelo caminho, desmaiando, convulsionando, exaustos, desnutridos, homens, crianças, mulheres.

Num cordão de escravos a morte era uma companhia sempre presente, um fantasma que não tinha preocupação com idade, força ou tamanho.

Os sinais da presença da morte estavam em todas as filas do cordão, começavam sempre aos tropeços, nos desequilíbrios constantes e ganhavam força no andar demorado, no passo arrastado. A morte era como um manto que aos poucos ia cobrindo o corpo, enevoado os olhos e abafando tudo. O sufocamento e a desesperança, os passos pesados, o cheiro de fezes e vômito, tudo parecia trazer a morte para mais perto. E ela vinha silenciosa, quando alguém percebia, ela já estava agarrada na boca do estômago, seus dedos ficavam pulsando, apertados, numa ânsia presa na garganta, escorrendo no peito em taquicardia, até que, de repente, as almas, machucadas, desistiam dos corpos. E os corpos, já sem razão de vida, caíam subitamente no chão das estradas e, nelas, sem maiores constrangimentos, eram abandonados. Mães e filhos, irmãos e irmãs, famílias inteiras se desfizeram naquele cordão de escravos. Aquelas ausências eram presenças sempre constantes na memória enevoada de Pedro.

Pedro chegou na propriedade dos Dias muito magro e com o pescoço em carne viva. Ele soube que estava chegando ao final daquele martírio, quando um capataz mostrou um gigante casarão branco que ficava no final de uma fina estrada de chão batido, era o ano de 1734. Pedro foi entregue com vinte e quatro anos de idade, bastante magro, mas com todos os dentes. Ele entrou na senzala com vontade de vomitar, foi então que viu sua mãe, cujo nome agora era Zulmira. Ficou feliz, pois há semanas não sabia dela, já tinha aceitado sua morte. Ela também estava quase em pele e ossos, por sorte, em poucos dias se tornaria uma das cozinheiras da casa.

Com a boca seca, Pedro sentou-se no fundo da senzala, suas pernas tremiam de cansaço, ele recebeu de sua mãe uma cabaça com água. Mwana, sua irmã, surgiu de uma das laterais da senzala, veio e colocou ao seu lado um punhado de palha de milho, para que ele pudesse reclinar o corpo. Minutos depois, aos empurrões, entrou no velho prédio de barro o seu irmão Zulu, suas costas sangravam. Em seguida, entraram uns outros escravos que foram comprados pelo caminho, numa tentativa do vendedor em reduzir as tantas perdas que teve entre Salvador e São Paulo, afinal, ele precisava entregar 30 escravos para o patriarca da família Dias.

Nos dias seguintes, Pedro rapidamente se destacou como um escravo dócil e prestativo. Por falar bem o português, ele foi retirado da lavoura para ser um escravo doméstico. Trabalharia com as coisas da Casa Grande, o bom disso é que estaria em contato com sua mãe e irmã diariamente. Zulu, pelo contrário, como não era nem um pouco dócil e tampouco sabia da língua portuguesa mais do que o necessário para poder proferir as ofensas que constantemente usava em direção aos brancos, foi sofrendo um tratamento de espancamentos e castigos. Zulu, mesmo na fazenda, seguiu emagrecido, mas ainda assim tinha tamanho e força suficientes para causar um bom estrago em quem quer que fosse. O irmão de Pedro passou à ser visto com desconfiança pela maioria dos capatazes. Com o tempo, Zulu foi enviado para trabalhar na lavoura de cana e por diversas noites não retornou para a senzala com os demais, dormindo amarrado nos troncos de castigo.

Zulu Mbandi era um guerreiro, um soldado. Por isso, sempre demonstrou um profundo desprezo pelos homens que o escravizaram. Um tipo de nojo que se manifestava em tudo, na raiva contida em um simples olhar, até no grito, explodindo no ataque físico. Na verdade, não era bem desprezo o que ele sentia, Zulu era habitado pelo ódio. Por mais de uma vez entrou em luta corporal com os capatazes dos Dias, recebendo castigos imensamente desproporcionais, ainda assim, não havia chicote que o fizesse ficar com medo. As chicotadas pareciam potencializar a fúria. Depois dos açoites, muitas vezes, Zulu foi cuidado pela jovem Quitéria, uma escrava nascida na fazenda. Por óbvio, entre feridas e carinhos, não demorou para que os dois se apaixonarem. Mas nem mesmo o amor foi capaz de amenizar o ódio que habitava o coração do irmão de Pedro.

Um dos capatazes, José Tenório dos Santos, filho de um peão antigo da fazenda, era um dos mais temidos pelos escravos. Com o tempo, Tenório passou a fazer trabalhos de capitão do mato, dentre todos, sem dúvidas, era o mais violento. Notoriamente conhecido por tratar muito mal todo e qualquer escravo, sempre que podia, Tenório tinha o costume de se oferecer para chicotear os escravos em seus castigos, ele dizia ser capaz de bater até cinquenta vezes sempre com a mesma força. O capitão do mato também demonstrava prazer em “batizar” os fugitivos. Um castigo terrível, que consistia em se pegar uma haste de ferro com a letra F na ponta e deixá-la no fogo até ficar incandescente, em seguida, com o fugitivo amarrado no tronco, o ferro torrava seu peito.

Num dia, após o almoço, enquanto caminhava por detrás da Casa Grande, Tenório pegou e espancou um menino de seis anos, bem na entrada da senzala. Bateu tanto que o menino desmaiou. O motivo? A criança estava brincando com tocos de lenha que tinham sido empilhados, à mando de Tenório, ao lado da porta da cozinha. Sentado na escuridão da senzala, com as costas em chamas, ele observou quieto o menino ser espancado. E ele viu tudo. Cada relhada, cada tapa e chute, Zulu viu tudo.

E os dias foram passando na fazenda dos Dias. Numa noite, durante uma festa na fazenda, Pedro tentou a fuga, mas em vão. Dos quatro fugitivos, ele foi o único que foi pego com vida. Tenório fez questão de marcar um F em seu peito, como se estivesse numa apresentação artística, marcou Pedro dentro da senzala, bem diante do olhar triste de sua mãe. Por volta das dez horas, a porta da senzala abriu, Tenório surgiu e empurrou Quitéria com força, ela caiu dentro da senzala, com a boca cortada, como se tivesse levado um soco. Sentou-se longe de Zulu, tinha as mãos trêmulas e os olhos cheios de lágrimas. Naquela noite, Quitéria não disse nada e sequer deixou que Zulu chegasse perto dela.

No dia seguinte, ao término de uma linda tarde de outono, Zulu estava numa das lavouras de cana-de-açúcar. A maioria dos escravos já tinha partido na direção da senzala, foram recolhidos e levados pelos capatazes. Mas Zulu, deliberadamente, ficou para trás. Ele sabia o que aconteceria. O vento refrescante carregava o cheiro doce da cana recém cortada, enquanto o sol do entardecer ia amarelando em diferentes tons a lavoura. Não demorou mais do que cinco minutos até que Zulu percebesse que alguém se aproximava pelas suas costas. – Vamos negro! Seu demônio imprestável. Bicho estúpido. Vamos! Passa para a senzala! – Gritou, Tenório, enquanto Zulu permaneceu imóvel e em silêncio.

– Vamos bicho imundo! Ficou surdo? – Foi então que Tenório ergueu o braço e, com toda a força, bateu com o relho nas costas de Zulu, um relâmpago de desumanidade que se estilhaçou em dor e que fez a raiva de Zulu borbulhar feito lava. Ainda assim, ele não se moveu.

Então, Tenório, ainda mais furioso, e depois de outras dúzias de xingamentos, bateu novamente, acertando a lateral do rosto do angolano. Quando o capitão do mato foi bater pela terceira vez, Zulu se virou rapidamente. Ele segurou firmemente o relho, pegando pela metade da correia de couro com o braço direito, depois de um giro, deu um chute estrondoso nas pernas de Tenório, que prontamente caiu, batendo fortemente as costas no chão de terra dura. O tombo deixou-o sem ar, tanto que mal pôde tentar reagir de forma imediata, nisso, Zulu saltou e enfiou o joelho com violência em sua barriga, acertando a boca do estômago. Com as mãos, o irmão de Pedro agarrou e apertou com tanta força o pescoço de Tenório, que os olhos do capitão do mato se avermelharam e, esbugalhados, quase saltaram para fora das órbitas. A raiva de Zulu era uma energia que escorria por seus dedos.

Tenório tentou em vão retirar as mãos de Zulu de seu pescoço, sequer teve forças para isso, mas a cada vez que tentava, recebia em resposta um impacto brutal de sua nuca com o chão. Não tardou muito para que a vida abandonasse aquele corpo branco e fedorento. Mesmo depois de perceber que Tenório já estava morto, Zulu seguiu em fúria. Tão logo parou de estrangular Tenório, ele ainda quebrou o seu nariz à socos e depois bateu em sua boca, usando as mãos como marretas. Bateu até ver os dentes de Tenório saltarem para fora da boca. Foi então que outros dois capatazes avistaram o que acontecia, o primeiro deles chegou correndo e bateu com um relho em Zulu, imediatamente ele viu um grande homem negro se erguer na sua frente. O capataz bateu outras duas vezes com o relho no peito de Zulu, ele parecia não sentir nada. Em seguida, o capataz levou um chute, que de tão violento, quebrou-lhe o joelho, fazendo-o se abaixar de dor e medo. Na sequência, outro chute, agora no nariz, atordoado e com a cara ensanguentada, o jovem capataz recebeu uma gravata do angolano. Mais capatazes chegaram, tentaram em vão soltar o colega dos braços do irmão de Pedro, com chutes, relhaços e socos, mas nada adiantou. Zulu o matou na frente de todos. Até que um dos capatazes veio e deu uma paulada que atingiu a cabeça do angolano.

Os homens pareciam atônitos, demoraram para entender o que tinha acontecido, afinal, tudo fora tão rápido. Quase meia hora depois do ocorrido, ainda sob olhares espantados, apareceu o dono da Fazenda, o Conde João Henrique dos Santos Ribeiro Dias, junto dele vieram dois de seus filhos, Ramão e Manoel. Chegou num galope rápido em seu cavalo negro, quando apeou, viu-se diante de uma cena improvável, dois homens brancos mortos, ensanguentados, no meio da lavoura. E o mais espantoso, entre eles, estava seu principal capataz, Tenório. Depois de saber de todo o ocorrido, o Conde João ordenou que Zulu fosse levado de volta à fazenda, mas que fosse arrastado por cordas amarradas aos pés, deveria ser puxado por cavalos até o tronco de castigo. Ficaria lá, amarrado, até que se decidisse o que fazer com ele.

No dia seguinte, no meio da manhã, a fazenda toda foi levada até o pátio central para assistir ao castigo que Zulu seria submetido.

Do tronco de castigo em que estava preso, estrutura que ficava nos fundos da senzala, ele andou cerca de cem metros. Chegou no pátio escoltado por vários homens, tinha as mãos e os pés acorrentados, no entanto, andava como um rei, mantendo o queixo erguido e o olhar desafiador. Por parte dos capatazes, não restava dúvidas, havia um medo no ar, tanto que dois jovens capatazes pediram para não conduzi-lo até o tronco, temiam ser agredidos pelo escravo matador de brancos. A tarefa foi feita por José dos Santos, o Zé Formiga, o mesmo que bateu na cabeça de Zulu e que assumiu o cargo de Capitão do Mato tão logo Tenório foi enterrado.

Zé manteve uma certa distância de Zulu, pediu ajuda para colocá-lo no tronco. Zulu tinha um grande corte em uma das têmporas. Ele viu na sua frente os olhos chorosos de sua mãe, tentou buscar por Quitéria, mas não a enxergou. Ele viu, sim, foi a admiração nos olhares silenciosos de escravos que ele nem conhecia. Chibatada após chibatada, Zulu gritava “jamais serei um escravo!”, sua voz ecoava em kinbundu, a língua materna de sua tribo. A fazenda toda era tomada pela sua voz.

– Ti ngenda kusaku kia nkosi! E o chicote, em resposta, queimava novamente a pele de suas costas. Os homens se revezavam em três, cada um dava de dez chibatadas e depois passava a vez. A ideia era de que o açoite fosse dado sempre com a mesma força, pois se fosse um homem apenas a aplicar o castigo, cansaria e acabaria por bater com menos violência.

– Ti ngenda kusaku kia nkosi! E quando mais uma chibatada estalava por sobre sua pele, a dor e a fúria gritavam por sua boca. Zulu não conseguia enxergar Quitéria, tentava mover a cabeça para os lados, mas não a encontrava. Foi então que, entre a dor de mais uma chibatada, conseguiu ver a mulher por quem havia se apaixonado.

Ela estava em pé, atrás de todos os escravos, chorando copiosamente.

– Ti ngenda kusaku kia nkosi! – Fez isso durante as primeiras cinquenta e nove chibatadas, até que sua voz foi gradativamente diminuindo. O “Ti ngenda kusaku kia nkosi” foi perdendo a força. “Ti ngenda kusaku kia nkosi” já não ecoava mais, a frase foi virando uma oração, transformando-se num sussurro. “Ti ngenda kusaku kia nkosi”, foi virando um suspiro. Um silêncio.

Zulu levou 116 chibatadas até desmaiar, mesmo depois de morto, seguiu apanhando.

Afinal, aquele era o castigo, ele precisava ser açoitado por 200 vezes na frente de todos os escravos da fazenda. No fim, nem mesmo os brancos aguentavam mais assistir, alguns dos escravos olhavam para o chão. As crianças, as mulheres, tinham os olhares vagos, assim como Zulu, pareciam quase mortos. E enfim, veio a chibatada de número duzentos.

Pedro estava há poucos metros, ele tinha no peito uma queimadura profunda, a herança de Tenório, e o corpo preso num tronco de castigo que ficava na lateral da Casa Grande. Um tronco horizontal, feito de uma prancha de madeira com vários furos, onde braços e pernas eram enfiados e depois acorrentados, de maneira que o corpo ficava numa posição extremamente desconfortável e rapidamente dolorosa.

Acorrentado, Pedro nada pode fazer, senão assistir a alma de seu irmão se desfazendo ali na sua frente. Zulu tinha as costas abertas em rasgos feitos pelo chicote, via-se a carne vermelha e o branco da gordura subcutânea contrastando sob a pele negra, cortes nos ombros e no rosto, com sangue escorrendo, deslizando pelas pernas imóveis, caindo até tocar no chão. O sangue africano irrigando a terra de um país que não era seu. Os gritos enfurecidos e a morte de Zulu marcaram profundamente todos os escravos da fazenda. A história de Zulu foi contada em várias senzalas da região e foi sendo recontada por várias gerações de escravos. Zulu virou um tipo de lenda. A história de um guerreiro que, mesmo tratado como se fosse um escravo, não morreu como um, mas como um guerreiro. Morreu, apesar de aprisionado, feito um homem de alma livre. (…)

*Trecho de um livro que estou escrevendo, onde narro a saga de uma família de sesmeiros ao longo da história da Pampa gaúcha, entre os séculos XVII e XIX. Pedro, é um dos personagens do livro.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e tem Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia
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