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Os fios da ancestralidade por Rosana Zucolo

Sempre gostei de lãs, fios e linhas. Vem de tempos memoriais quando a mãe fazia tricô, a avó era exímia em crochê (nunca aprendi), outra avó fazia vestidos com a pala em favos para as inúmeras netas e uma vizinha muito próxima costurava lindas peças de roupas. A mistura de cores transformada em elementos distintos por mãos habilidosas encantava a imaginação da criança que por ali circulava entre novelos de lã e linhas em meio a peças de tecidos.

Esta experiência não é única. Uma explicação similar veio do pintor Carlos Scliar acerca de um quadro certa vez em exposição na UFSM. Enquanto alguns especialistas em arte interpretavam a obra a partir de leituras psicanalíticas, ele respondeu de modo simples e direto, dizendo que se tratava, sim, da lembrança do emaranhado de linhas das costuras com as quais ele, criança, brincava embaixo da mesa de trabalho de sua mãe.

Não me tornei expert em nenhuma destas artes, mas elas fazem parte de um fazer que, de algum modo, me levam às raízes e à sensação de pertencimento a alguma ancestralidade. Talvez por isso fui além do tricô e, anos atrás, comecei a usar o tear de pente liço. O despertar aconteceu no Bric da Redenção, em POA, no início dos anos 2000, quando encontrei um arquiteto aposentado que tecia coletes e mantas. Aquela “tecnologia” me deslumbrou enquanto possibilidade, mas só se materializou anos depois.

Desde então, eu teço. Se a questão é a necessidade de me reconectar, teço. Se for preciso acalmar interiormente, teço. Se preciso parar para entender algo, teço. É quase um modo de meditar. Misturar cores e fios é uma forma de lidar com o mundo e tentar ordenar, ao menos, aquilo que vai ao entorno de cada um. É dar cor ou sobriedade a alguns momentos da vida, de modo a apreender o que parece inacessível.

Nos últimos três anos, teci três mantas grandes de modo a abraçar os afetos próximos. A primeira delas foi para o pai dos meus filhos que, debilitado pela doença, sentia muito frio e se queixava do peso das cobertas tradicionais. Feitas em tricô, as mantas ficam quentes e leves.

Uma segunda manta foi para uma amiga-irmã que perdeu o filho no auge da pandemia. Tamanha dor é inconcebível e todos nós, desolados, isolados, impossibilitados de consolar uns aos outros de modo presencial. Naquele momento ninguém ousava viajar e chegar à casa de alguém comportava o risco de levar Covid.  Teci como quem abraça, acalenta, cobre, protege e consola. Teci na tentativa de me confortar também.

A terceira e última foi acabada na madrugada de hoje. Multicolorida, é destinada a vestir e aconchegar nos dias frios e cinza  todos os que quiserem se jogar no sofá da sala. Traz a cor da esperança de dias melhores.

E ao contrário de pensar que tecer é coisa doméstica e exclusividade feminina – tarefa das moças “prendadas” e de “fino trato” como foi ditado pelos cânones patriarcais -, na minha família há um primo especialista em tricotar mantas. Aprendeu nos Andes peruanos onde os homens tecem nas ruas. Descobriu que usar as lãs tem o poder de acalmar a mente e centrar o sujeito. E tece lindos cachecóis à revelia de comentários jocosos.

O bom é saber que a cada dia cresce o número de homens a buscarem nas agulhas outros elementos identitários. Gustavo Seraphim, no blog Papo de Homem, narra como se tornou um tricoteiro após o nascimento do primeiro filho e passou “a realizar encontros com homens para ensinar/praticar tricô e conversar sobre masculinidades, paternidades e relações de gênero.” Desde 2019 ele pesquisa e organiza grupos masculinos (Fio da Conversa) com o foco na prática da arte manual têxtil. Não vou dar spoiler porque vale conferir o texto dele no Papo de Homem, onde apresenta o resultado da pesquisa de profundidade com homens, de diferentes lugares do mundo, que tecem.

Fato é que as tramas e tecituras fazem parte da história humana. As peças de tricô mais antigas datam de 1200 dC, descobertas no Egito, e eram produzidas por homens, enquanto as mulheres se encarregava da roca de fiar e da produção dos fios. No entanto, já era relatada no épico Odisséia de Homero – século VIII aC -, com Penélope a tecer a mortalha de dia e a desfazê-la à noite, dando tempo ao retorno de Odisseu que estava na guerra de Tróia.

As Ilhas Britânicas (Jersey, Fair, Aran e Shetland) são responsáveis pelas produções mais famosas de tricô, tendo cada população desenvolvido um estilo próprio e peculiar de tricotar. A técnica foi introduzida nas ilhas pelos belgas e coube às mulheres produzir meias e cachecóis para proteção sua e dos seus maridos ao frio.

Na Espanha, homens teciam para agradar à corte e levavam até seis anos a formação de um bom tecelão. Somente no século XIX surgiram as máquinas de tricô e a coisa toda se industrializou. O retornou ao tricô artesanal data da década de 70 e permanece até hoje.

O que levou à tradicional visão binária da prática do tricô e à cristalização de estereótipos de gênero é papo para outra hora. Há muitos mitos a serem desconstruídos.  Por aqui vale entender que lidamos com os aspectos ancestrais a permear nosso inconsciente individual e coletivo.

Talvez a arte de tecer seja uma forma de resistir com o que temos de mais profundamente humano frente a uma sociedade que se digitaliza e transforma de modo acelerado.

 

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