Os homens estavam exaustos. Depois de dias cercados por tropas maragatas, sem comida e sem água, a rendição parecia o melhor caminho. Cerca de 300 soldados Pica-paus foram presos e postos dentro de um cercado de pedra, um curral destes antigos, estrutura feita para conter os animais, construído por escravos. Do lado de fora, no calor de novembro, uns tragos de canha eram engolidos entre risos pelos vitoriosos maragatos.
Debaixo da sombra do angico, um homem afiava uma faca, a lâmina chiava sobre a dureza crua da pedra. Dentro do curral, apenas a angústia do silêncio e a incerteza da vida. Tão logo o primeiro homem foi retirado do potreiro, o silêncio logo deu lugar aos gritos de desespero. Alguns, diante da morte iminente, eram laçados feito bois e arrastados para o lado de fora, agarrados pelos cabelos. Debatendo-se, uns iam tentando se segurar no pasto ralo da terra seca da mangueira. Esperança vã. Era um potreiro de almas abandonadas que padecia nas margens tranquilas da Lagoa da Música.
Fora do cercado de pedra, o soldado que havia sido retirado para sofrer a degola, era obrigado a se ajoelhar. O homem com a faca vinha sem pressa, passando o fio da lâmina contra a unha do polegar, queria ter certeza de não ter que deslizar a faca mais de uma vez contra a carne. Queria um corte limpo. Alguns, quando postos de joelhos, tentavam apertar o queixo contra o peito, uma busca instintiva por proteger o pescoço. Os olhos se arregalavam, o coração mergulhava em taquicardia enquanto a respiração era um ofegante e contínuo movimento.
Como forma de levantar a cabeça e expor o pescoço, um dos soldados que auxiliava o degolador enfiava a ponta de uma faca na narina e empurrava para cima. Muitos narizes foram cortados, quase todos os queixos se erguiam. Uma vez que o pescoço estivesse exposto, o olhar da vítima enxergava o céu azul do pampa gaúcho, uns pássaros cruzando longe, o canto do quero-quero misturado com o vento quente, umas nuvens calmas e, antes delas, o rosto do degolador.
E o fio da lâmina fazia um corte que começava perto de uma das orelhas, cruzava todo o pescoço, rompendo as carótidas e terminava perto da outra orelha. Esse corte era conhecido como a “degola criolla”. Tinha outro tipo de degola, era a “degola brasileira”, onde o corte era menor, a cabeça não chegava a cair para trás. O degolado tinha tempo de mover as mãos e sentir o sangue entre seus dedos, que inutilmente tentavam estancar a vida pelo buraco da faca. Restava a queda no chão, as tentativas de jogar ar para os pulmões, o corpo se debatendo em pânico e tudo terminava depois de umas dúzias de segundos de sofrimento. Era novembro de 1893.
Em dezembro de 1977 em Uruguaiana, no palco da Califórnia da Canção Nativa, em sua sétima edição, Apparício Silva Rillo e Mário Barbará Dornelles apresentavam uma das obras mais poderosas do nosso cancioneiro. Ela se chamava “Colorada”. Uma canção que fazia o oposto daquilo a que estávamos acostumados em boa parte da nossa produção artística, em vez do ufanismo diante dos caudilhos do passado, onde o gaúcho era visto como o detentor das melhores qualidades humanas e onde a elite pecuarista guardava na estância os melhores valores da sociedade, “Colorada” vinha nos lembrar de um tempo em que o gaúcho tinha rasgado a nobreza e estava em luta contra ele mesmo. E no espelho do passado, a imagem refletida era bem diferente daquela que a maioria das canções nativistas mostrava. “Colorada” vinha nos lembrar dos anos de barbárie, de um Rio Grande do Sul onde a degola era a regra e a vingança se escrevia com sangue nas paredes.
“Olha a faca de bom corte,
Olha o medo na garganta!
O talho certo e a morte,
No sangue que se levanta.”
A letra toda é uma poesia que se sustenta em sua riqueza histórica. Sempre que eu ouço “Colorada” eu me gelo, tipo quando era guri, na beira do fogão a lenha ouvindo as histórias de assombração da minha avó. Os versos de “Colorada” cortam fundo na nossa história e eu sempre sinto como se uma lâmina de fato tocasse meu pescoço. Rillo e Barbará nos levam para outro século, para um outro Rio Grande do Sul, feito de campos planos de medo e morte, o tempo “das revolução, das guerra braba de irmão contra irmão”.
Um tempo de extremismos, de violência e morte banalizada. O tempo da Revolução Federalista ou, como muitos chamam, a Revolução da Degola. Nos fins do século XIX, nosso povo se matou de formas tão violentas que dariam inveja a muitos ditadores.
Para quem não sabe muito sobre esse período, cabe dizer que nosso Estado era um lugar muito instável politicamente nos anos 1890.
Historicamente, no colégio, sabemos um pouco sobre a Revolução Farroupilha, outro pouco sobre a Guerra do Paraguai e quase nada sobre a Revolução Federalista de 1893. Esse hiato escolar, creio, até que ajudou no trabalho tradicionalista de imaginarmos o gaúcho como um ser honrado e cordial. No entanto, o que se viu em 1893 foi bem diferente. Em pouco mais de dois anos (fevereiro de 1893 a setembro de 1895) cerca de 12 mil gaúchos se agrediram e se mataram, destes, mais de mil morreram da mesma maneira: degolados. Vizinhos lutando contra vizinhos. Parentes contra parentes. Amigos contra amigos.
O Estado estava dividido entre duas correntes políticas. De um lado, os Republicanos, ou os Pica-paus, afeitos ao Positivismo e liderados por Júlio de Castilhos, membros do Partido Republicano Rio-Grandense.
Do outro lado estavam os Liberais, do Partido Federalista Brasileiro, os Maragatos, liderados por Gaspar Silveira Martins, com seus lenços vermelhos no pescoço. A querida Sandra Pesavento, falecida historiadora, já escreveu bastante sobre esse período e tornou claro o que cada lado queria.
Os Republicanos queriam que uma elite de intelectuais e de sábios fosse a promotora de um desenvolvimento capitalista para todo o Estado. No entanto, também queriam que este Estado, no intuito de fomentar essa mudança, fosse autoritário e opressor com os descontentes.
Os Federalistas, acostumados ao protagonismo, queriam que a elite da região da Campanha fosse a força política principal, uma aristocracia pecuarista cujo poder remontava aos tempos do Brasil Império e que, historicamente, estava ligada ao contrabando nas regiões de fronteiras e a criação de gado.
Dois modelos de sociedade que, sem conseguir dialogar, conduziram nosso povo ao sangue, ao ódio e à guerra civil. Para distinguirem-se, usavam lenços de cores diferentes, os Maragatos vinham com seus lenços vermelhos e os Pica-paus com lenços brancos, mas que no fim, diante da degola, como bem nos lembra Rillo, os dois lenços ficavam iguais.
“Onde havia o lenço branco,
Brota um rubro, de sol pôr.
Se o lenço era colorado,
O novo é da mesma cor.”
De tempos em tempos, Júlio de Castilhos gostava de demonstrar que ele era o poder e, para isso, utilizava da violência; e os caudilhos que o apoiavam eram a ponta de lança que estocava seus opositores. Pela região da Campanha e Fronteira Oeste, diversos eram os pequenos exércitos paramilitares comandados por estancieiros. Sabendo que um vizinho tinha posição política contrária, um estancieiro adepto de Júlio de Castilhos não pensava duas vezes para agir. Com isso, estâncias eram invadidas, mulheres eram estupradas, casas eram pilhadas, desafetos políticos perseguidos e mortos. Tudo sempre era feito sob as vistas grossas das autoridades locais, todas adeptas ao castilhismo. Tais ações foram criando um cenário de brutalidade e revanchismo constante entre estancieiros e apoiadores de ambos os lados.
“Era no tempo que os morto votava,
E governava os vivo até nas eleição.”
Em Bagé, no inverno frio de 1892, José Bonifácio da Silva Tavares, conhecido como Zeca Tavares, fazendeiro conhecido na região, recebia em sua estância, a Estância do Limoeiro, a visita de três homens que eram ameaçados de morte pelos Pica-paus de Júlio de Castilhos. Sabendo dos riscos de hospedá-los, resolveu levar os três para Bagé, para a casa de um conhecido, enquanto isso, sua esposa Umbelina, ficaria sozinha cuidando da estância.
Durante a noite, diversos homens liderados por outro estancieiro, Maneco Pedroso, vindo de Piratini, cidade vizinha, invadiram a Estância do Limoeiro. Nada fizeram com Umbelina e as crianças, no entanto, depredaram o que puderam, roubaram pertences e animais, quebraram coisas e, por fim, mataram um porco. Numa sala da casa grande, o escritório, havia uma cadeira onde Zeca Tavares gostava de sentar ao final do dia para falar de política e pensar nos seus afazeres. Nela, Maneco ordenou que colocassem o porco sentado, morto, degolado. Na cabeça do porco, colocaram um chapéu que era de Zeca Tavares e estava pendurado num chapeleiro. Com o sangue do porco, na parede do escritório ao lado, escreveram a seguinte frase: “A tua cabeça será nossa.”
Umbelina, apavorada, enviou telegramas para diversos jornais, denunciando a barbárie a que fora submetida sua família. No Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil publicava um de seus telegramas: “Forças de Pedroso continuam perseguindo meu marido, Zeca Tavares. Minha fazenda Limoeiro foi arrasada. Levaram gado, cavalos e ovelhas. Casa e móveis estragados. Pergunto a quem devo fazer responsável por tais atos de vandalismo?”
Pronto. Estava firmado em sangue, na parede, o contrato de ódio entre duas famílias, o clã dos Tavares e o clã dos Pedroso: Zeca Tavares, um maragato, e Maneco Pedroso, um Pica-Pau, eram a definição do ódio. Um ano depois, em 1893, os maragatos, cansados da violência castilhista, iniciaram uma guerra para retirar do poder Júlio de Castilhos e todos seus apoiadores.
Antes da Revolução ter seu início, Zeca Tavares teve que deixar a família e fugir para o Uruguai. Estava jurado de morte pelos Pedroso. Permanecer em Bagé era colocar em risco a Estância do Limoeiro e sua família.
O irmão de Zeca era o General João Nunes da Silva Tavares, o Joca Tavares, ex-combatente da Guerra do Paraguai e da Revolução Farroupilha. Por sinal, naqueles anos, a maioria dos homens adultos já haviam participado de alguma guerra, boa parte começava cedo, seja no Rio Grande do Sul, Paraguai, ou no Uruguai e Argentina. Por isso, com intuito de aumentar o efetivo de homens, tanto os Maragatos quanto os Pica-paus, contratavam soldados mercenários nestes países. A mão de obra era farta.
“Era no tempo das revolução,
Das guerra braba de irmão contra irmão,
Do lenço branco contra os lenço colorado,
Dos mercenário contratado a patacão.”
Zeca e Joca Tavares, sabendo da necessidade de organizar forças para a Revolução Federalista, ao retornarem para a região de Olhos D´Àgua, localidade aos arredores de Bagé, começaram a recrutar pessoas para compor seu exército. E não era difícil encontrar alguém disposto a aderir ao exército maragato, cujo um parente não tivesse sido assassinado ou tivesse tido a propriedade saqueada pelos Pica-paus. A maioria das pessoas que se alistava não ingressava nas forças maragatas por ideais ou questões políticas, alistavam-se mesmo era por vingança e ódio contra àqueles que lhes fizeram mal. Zeca e Joca já haviam organizado um bom exército na região de Bagé e contavam também com a ajuda de Adão Latorre.
Adão era major no exército federalista, um homem negro e livre, homem de confiança e também capataz das estâncias dos irmãos Tavares. Nascido no Uruguai, Latorre já havia participado de várias batalhas, desde os 16 anos de idade, quando se alistou no exército do Partido Blanco. Nas guerras uruguaias, lutou junto com Aparício e Gumercindo Saraiva. Aprendeu táticas de guerrilha e se destacou na cavalaria ligeira. A cavalaria ligeira era caracterizada por ter homens capazes de ficar o dia inteiro no sol, cavalgando com lanças e espadas, eram bons no tiro e ótimos no manejo do “ferro branco”, facas e facões. E no trato com os cavalos eram especialistas, não se importando em dormir em qualquer lugar, na chuva, na lama, no frio, sempre ao lado dos seus animais.
“Era no tempo dos combate a ferro branco,
Que fuzil tinha muy pouco e
Era escassa a munição.”
Adão Latorre era o típico gaúcho do século XIX. Hábil com a faca, sabia carnear qualquer tipo de bicho e o lombo do cavalo era extensão do próprio corpo. Habitava o pampa como se nele não houvesse nenhum aramado, cruzando de um lado para o outro das fronteiras como se elas não existissem. Assim, dominava o portunhol, sem ter frequentado escolas, pouco sabia de ler e escrever. Por ser pobre e mestiço, descendente de escravos, Adão Latorre sabia, desde jovem, a importância da sobrevivência.
Durante o século XIX, a sina de uma criança pobre no Rio Grande do Sul e Uruguai era pender ou para a lida do campo, trabalhando como peão de estância, aprendendo o manejo da faca e do cavalo, ou para a lida militar, pois guerras, assim como o gado, também não faltavam para se trabalhar. Adão Latorre conseguiu sobreviver em tempos de guerras e também nos tempos de paz. No Brasil, depois das lutas pelo Exército Blanco no Uruguai, trabalhava na lida do campo, como capataz de estância em Bagé e era tido como um membro da família Tavares, sempre que chegava na Estância do Limoeiro, as portas estavam abertas. Tinha em Olhos D’Àgua uma chácara onde morava com a mulher, o pai e uma filha. Dizem que certa feita, quando Adão andava com os irmãos Joca e Zeca Tavares, tropeando bois para o Uruguai, seu rancho foi invadido por um grupo de soldados Pica-paus. A casa foi saqueada, a filha e a mulher foram estupradas diante dos olhos de seu velho pai. Salvo a amizade de Adão pelos irmãos Zeca e Joca, talvez esse acontecimento também tenha contribuído para que ele se alistasse junto aos Maragatos.
Sempre que podiam, Adão, Zeca e Joca destruíam trilhos da ferrovia para evitar que munição e armas fossem enviadas para a cidade de Bagé, onde estavam as tropas comandadas por seus desafetos, Maneco Pedroso e seu irmão, Antero.
Em outubro de 1893, depois de assumir o comando da força castilhista, o Marechal Isidoro Fernandes resolveu ir para Bagé. Com ele foram soldados, cavalos, canhões e armas. Isidoro queria fazer da cidade de Bagé um reduto para os lenços brancos, já que ali estava o maior foco das tropas maragatas. Dominar a região de Bagé seria um grande trunfo para a vitória dos Pica-paus.
Isidoro decidiu repartir as forças em três locais diferentes. Os irmãos Maneco e Antero Pedroso ficariam junto com Isidoro, dando proteção a estação férrea Rio Negro (hoje no município de Hulha Negra). Outra parte dos soldados ficaria em Bagé e uma terceira parcela ficaria na região do Quebracho Grande, sob liderança do Capitão Bento Gonçalves da Silva Filho, descendente do líder farroupilha, General Bento Gonçalves.
Os irmãos Joca e Zeca Tavares fizeram diversas investidas contra o grupo da estação Rio Negro, foram enfraquecendo lentamente os Pica-paus. Num dia, Maneco Pedroso tentou sair com um pequeno grupo para pedir ajuda para o restante das tropas que estavam em Bagé ou Quebracho Grande, mas não conseguiu passar pelos lanceiros maragatos e teve de voltar. Antero, irmão de Maneco, tentou convencer o irmão a fugir durante a noite, visto que Joca e Zeca estavam em grande vantagem. Foi em vão. Maneco disse que jamais abandonaria seus soldados ali. Antero partiu sozinho, enquanto Maneco, depois do Marechal Isidoro Fernandes se render, ficou isolado com seus soldados.
“Era no tempo do inimigo não se poupa,
Prisioneiro era defunto,
E se não fosse era exceção.”
O Marechal Isidoro, não se sabe se por falha ou má-fé, condicionou a rendição: queria que todos os oficiais militares fossem poupados e recebessem tratamento digno. Maneco não era um oficial de carreira, seus soldados não eram militares. Eram civis, peões, trabalhadores, uns eram argentinos, outros uruguaios, uns eram mercenários que haviam sido contratados para lutar ao lado de Maneco. Todos foram deixados para trás pelo famoso marechal.
Maneco e seus soldados foram presos e colocados na mangueira de pedra. O triste e famoso “Potreiro das Almas”. Zeca Tavares e Maneco Pedroso, dois dos maiores desafetos da Revolução Federalista, enfim, estavam postos um na frente do outro.
Zeca, mesmo diante da negativa do irmão, ordenou que a degola começasse. Queria que alguém de confiança fizesse o trabalho, alguém que honrasse o ocorrido na Estância do Limoeiro. Chamou Adão, seu major, capataz e amigo. Adão Latorre, até então, jamais havia sido associado ao triste assombro da degola, mas como peão que era, cumpriu a ordem do patrão. O primeiro a ser retirado da cerca de pedra foi ele, Maneco.
“Quem mata chamam bandido,
Que morre chamam herói.
O fio que dói em quem morre,
Na mão que abate não dói.”
Na lenda que se reza, diz-se que houve um diálogo entre Adão, o degolador, e Maneco, o degolado. Uma conversa feita entre dois gaúchos, homens que em nome da política lutavam de lados opostos e que em vida moravam lado a lado, campereando pelos mesmos pastos e sorvendo mates da água dos mesmos rios e sangas.
– Adão, quanto é que vale a vida de um homem valente e de bem? Perguntou Maneco, ainda em pé diante de Adão.
– Valente, sim. De bem, não sei. Respondeu Adão, com sua faca de cabo de prata em mãos.
Depois de um tempo, Adão prosseguiu:
– A vida de um homem vale muito, mas a tua não vale nada, tanto é que ela está aqui no fio da minha faca, não há dinheiro que pague.
– Então degola! Vai, degola, negro filho da puta!
Maneco, irritado com a ofensa, teria dado um soco em Latorre, que logo em seguida deu um tapa com o dorso da mão na cara de Maneco, derrubando o chapéu do coronel no chão.
– Para onde tu vais, não vais precisar de chapéu. Sentenciou Latorre.
Os relatos desse dia dão conta que não houve mais nenhuma fala, nenhum pedido de clemência por parte de Maneco. Ajoelhado, posto diante do degolador, levantou o queixo, como que tentando facilitar o trabalho de Latorre.
“Botavam nele a gravata colorada,
Que era o nome da degola
Nesses tempos de leão”
Os Pica-paus foram sendo retirados do curral de pedra, uns eram laçados e puxados para fora. Os gritos, as orações, as súplicas, nada fazia diferença. Dizem que entre os degolados, Adão encontrou os homens que visitaram sua Chácara em Olhos D’Àgua, eram os mercenários correntinos que estupraram sua filha e esposa.
A faca de Adão Latorre, de acordo com Joca Tavares, degolou 26 homens naquele dia. A imprensa castilhista divulgou que foram mais de trezentos os homens degolados. Os corpos, tão logo parassem de se mover, eram empilhados num canto, depois foram jogados nas águas da Lagoa da Música. Nunca se soube de fato quantos foram mortos naquele dia de novembro na Estação Rio Negro.
Adão Latorre foi alçado pelos jornais governistas ao posto de maior vilão da Revolução Federalista, embora outros degoladores tenham feito pior e matado muito mais pessoas, mas eles não eram negros como Adão. Em 05 de abril de 1894, no Boi Preto, perto de Palmeira das Missões, o Coronel Pica-pau, Firmino de Paula, fez 370 maragatos como prisioneiros. Enquanto rumava com todos amarrados em direção a cidade de Cruz Alta, foi degolando aos poucos e enfileirando os corpos ao longo da estrada. Chegou em Cruz Alta sem nenhum prisioneiro. Antes, Firmino já havia feito pior, 800 maragatos prisioneiros, crianças, velhos e mulheres. Quase todos degolados.
Depois de 1895, já com sessenta anos, Adão voltou para a sua chácara. Depois de perder um filho e esposa, viveu como um homem do campo normal, casou de novo, criou os filhos, viu os netos, carneou ovelhas, tomou chimarrão. Evitava falar dos tempos de guerra e, sobretudo, evitava os olhares revanchistas no bolicho da vila. Adão sabia que muitos queriam lhe matar, mas poucos tinham coragem de tentar.
Em 1923, Adão Latorre estava com 88 anos, montava seus tordilhos com facilidade e conseguia ainda empunhar uma espada, por isso ele não pensou duas vezes em participar da Revolução de 1923. Não passava pela sua cabeça ficar em casa, enquanto seus companheiros maragatos estavam numa batalha. O Coronel Adão Latorre foi cavalgando em seu tordilho em direção a Dom Pedrito. Lá estava o exército dos antigos Pica-paus, agora conhecidos como Chimangos e duas de suas lideranças republicanas: Oswaldo Aranha e o coronel José Antônio Flores da Cunha, intendente de Uruguaiana.
O frio que fazia em 15 de maio de 1923 nas margens do Rio Santa Maria Chico era tamanho que recebeu até menção no diário de batalha de Flores da Cunha, escreveu ele que do lado Chimango as patas dos cavalos quebravam o gelo da geada cada vez que se movimentavam. Do outro lado, os jovens maragatos se embebedavam para combater o medo e mascarar o frio. Muitos não entendiam o que Adão estava fazendo ali, na véspera de uma batalha. Aquele velhote de corpo franzino, face gorda e barba branca deveria estar na beira de um fogão a lenha. Adão Latorre estava quieto, debaixo do seu poncho, pronto para o dia seguinte.
Mal a geada havia desaparecido e as metralhadoras governistas fuzilaram os jovens maragatos. Muitos fugiam enquanto a saraivada de tiros ia varrendo tudo. Adão e seu tordilho permaneceram em posição, na tentativa de motivar os que ainda não sabiam o que fazer. A modernidade tinha chegado e a guerra já não era mais a mesma de antes. Os maragatos ainda acreditavam nas guerras feitas no lombo do cavalo, com facas, rifles e espadas. Já Borges de Medeiros tinha armado a Brigada Militar com metralhadoras e os novos Mausers.
O tordilho de Adão jamais voltou para chácara em Olhos D’Àgua. Foi morto a tiros. Latorre, caído no chão, entre os sons de tiros e os gritos dos feridos, ainda tentou seguir pelejando, ao pegar outro cavalo, mas foi novamente atingido por tiros de rifle. Morreu aos 88 anos, com uma espada na mão e com um lenço vermelho no pescoço, lutando pelos maragatos.
Em Olhos D’Àgua, no alto de uma coxilha, perdido no meio do pasto alto, ainda resiste o seu túmulo, erguido em 1926. Nilson Mariano, autor de “Um tal Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893”, visitou o local, encontrou uma lápide quebrada, talvez por uma marretada. Adão até na morte seguiu nas terras dos Tavares.
A Estância do Limoeiro ainda existe e segue pertencendo a família Silva Tavares. Firme com suas construções antigas, seus móveis e sua arquitetura espanhola. Dentro da Casa Grande, até hoje está a cadeira onde Zeca Tavares viu um porco morto com seu chapéu. A estância é patrimônio cultural do Estado, tem museus e uma pousada onde recebe visitantes.
E eu, no calor de novembro em Uruguaiana, olho para o céu azul do pampa que tantos olharam pela última vez, vejo suas nuvens lentas, as marrecas voando no vento quente em direção as lavouras de arroz. Estendo o meu braço e agarro a minha faca de bom corte, passo a lâmina lentamente na carne e retiro um pedaço da costela de ovelha que repousava sobre a brasa de espinilho. Sem antes, é claro, aumentar o volume do meu toca-discos para ouvir novamente a voz de Mário Barbará cantar ela: “Colorada”.
Indicação de livros: Para os que gostariam de saber mais sobre a Revolução de 1893, além das diversas teses e dissertações sobre o tema, indico as obras de Nilson Mariano, “Um tal Adão Latorre. A degola na Revolução de 1893” e o recente livro de Ricardo Ritzel, “As cinco tumbas de Gumercindo Saraiva e outras histórias de guerras gaúchas”.
Viajei no tempo com essa narrativa, muito bom Roger!!!!
Pedro, Colorada é uma aula de história do Rio Grande do Sul…