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“O DESERTO AZUL DA CRIATIVIDADE” por Bartira Bejarano Campos

Artigo escrito em junho de 2017 para o Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos audiovisuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

Bartira Bejarano Campos é roteirista e pesquisadora, mestre em Audiovisual pela ECA-USP. Produz conteúdo para TV e WEB, já escreveu para canais como GNT, TV Cultura, SBT e Globoplay. Seu trabalho inclui projetos de ficção, não-ficção, documentais e institucionais. Nasceu em São Paulo em 1983, é formada em Comunicação Social em Multimeios na PUC-SP, e em seu mestrado especializou-se em roteiro, percorrendo seus processos criativos.
O DESERTO AZUL DA CRIATIVIDADE

 

Dia 12 de maio, quarta-feira, às 19h tem live de lançamento do livro “Sala de Roteiro” da autora na Rede Sina. Em breve mais informações. 

 

ARTIGO:

“O DESERTO AZUL DA CRIATIVIDADE” por Bartira Bejarano Campos

Resumo: Diante da complexidade do conceito de criatividade, a monografia busca apresentar definições que melhor ilustram os processos de criação em contextos colaborativos, como as recentes Salas de Roteiristas para séries televisivas, à luz da ideia de rede líquida de Steven Johnson. Para tanto, abordaremos sobretudo o sistema modelo formulado por Mihalyi Csikszentmihalyi, ao propor que a criatividade surge em virtude de um processo dialético entre indivíduos de talento, áreas do conhecimento e práticas, e campos de juízes instruídos.

Palavras-chave: Criatividade, sala de roteiristas, criação colaborativa, processo de criação, séries televisivas.

É chamado de deserto azul o trecho do oceano pacífico que se estende entre a Ásia e as Américas. A definição é clara, são milhares e milhares de quilômetros de mar aberto onde só se vê água azul, não há profundidade suficiente para ancorar, não há terra à vista, portanto, não há nenhuma ilha ou continente para aportar[1]. Quase que não importam mais as marés, os ventos, as ondulações e as correntes marítimas. A sensação de quem por lá navega é de estar sempre à deriva, na superfície de um deserto salgado e mole, castigado pelo sol. Ocorre que, no interior deste deserto, algumas espécies sobrevivem à falta de nutrientes e um mundo misterioso e pouco explorado encontra-se oculto nas profundezas do mar.

Metaforicamente, quem estuda a criatividade passa a navegar águas profundas, e, a cada trecho busca jogar sua âncora em alguma terra firme, busca se encontrar em meio ao oceano de conceitos e propostas. Mesmo que certos mapas apontem direções promissoras, o marinheiro não pode se esquecer do que há submerso, aquele mundo que por diversas vezes foge de seu conhecimento de navegação. Não se trata de dizer que os estudos sobre criatividade são inconsistentes. O que se permite refletir é que tais estudos habitam diferentes lugares e apontam ideias divergentes que por vezes se colidem e dizem respeito aos mais variados contextos e áreas.

Falar em criatividade é falar muitas línguas, é dialogar com muitas culturas, é perder-se e achar-se em conceitos e definições que permeiam a busca por compreender o nascimento de novas ideias, a gênese, o indivíduo criativo e seu processo do criar. Falar em criatividade é falar de um estudo interdisciplinar, que, além de estar enraizado na psicologia, também encontra-se na epistemologia e na sociologia (BODEN, 1999). Diante da criatividade está um mar de definições, e dentro de um indivíduo criativo também habita um mar de conexões e ideias inovadoras.

Metáforas à parte, Margareth Boden em seu livro “Dimensões da Criatividade” (1999, p.204) diz que a criatividade denota a capacidade de uma pessoa para produzir ideias, concepções, invenções ou produtos artísticos novos ou originais, que são aceitos pelos especialistas como tendo valor científico, estético, social ou técnico. Dentro desta definição, a criatividade somente existe mediante aceitação de especialistas e é justamente este o ponto de partida do estudo sobre criatividade proposto pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi, em seu livro “Creativity: Flow ante the Psychology of Discovery and Invention” (1997). Csikszentmihalyi aponta que sempre a primeira questão que um autor coloca é o que é a criatividade?, mas, para ele, a pergunta correta seria onde está a criatividade?. A criatividade não ocorre dentro da cabeça de uma pessoa, mas sim em uma interação entre os pensamentos desta pessoa e seu contexto social. Boden concorda:

Quem quiser entender os fenômenos da criatividade não pode simplesmente focalizar o indivíduo – cérebro deste, a personalidade daquela, as motivações daqueles. Ao invés disso, é preciso ampliar o foco para incluir um estudo da área em que o indivíduo criativo opera e dos procedimentos utilizados para emitir julgamentos de originalidade e qualidade. (BODEN, 1999, p. 152)

Ideias criativas desaparecem se não houver um receptor que a registre e a implemente. Segundo este ponto de vista, a criatividade resulta da interação entre cultura, pessoa e campo de atuação (CSIKSZENTMIHALYI, 1997). Portanto, o autor propõe que a criatividade somente pode ser vista e observada em inter-relações de um sistema entre três principais partes: Pessoa, área e campo, o que ele denomina Sistema Modelo[2]. A pessoa está inserida em uma área de atuação, que por sua vez encontra-se dentro de um contexto maior, um campo.

Por campo, entendemos ser um lugar, ou alguém, uma entidade ou órgão que reconhece a criação desenvolvida pela pessoa. Este lugar é específico de determinada área. O Sistema Modelo reconhece que, de fato, a criatividade não pode estar separada de seu reconhecimento. A pessoa criativa precisa convencer o campo que sua ideia é válida, é inovadora (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

Por área, entendemos como o conjunto de regras, de técnicas de um determinado ofício, seus métodos, suas formas e seu conhecimento simbólico.

Já a pessoa que cria dentro desta área especifica conhece suas regras e seus métodos. Esta pessoa usa seu domínio dentro de uma área de atuação, dentro de um determinado campo composto por profissionais gabaritados capazes de julgar a sua invenção.

E é por uma conexão inseparável que a criatividade deve, em última análise, ser vista não como algo que ocorre dentro de uma pessoa, mas dentro de um sistema (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

O Sistema Modelo pode ser ilustrado da seguinte maneira:

Figura 1: Csikszentmihalyi’s Creative System Model

Sendo assim, a pessoa não pode ser criativa estando fora de sua área. Mas mesmo inserida dentro de sua área, a criatividade só se manifesta com o reconhecimento e legitimação do campo. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997, p.29)

Os indivíduos não são criativos (ou são não-criativos) em geral; eles são criativos em campos especiais de realização, e é necessário que adquiram especialização nesses campos antes de poderem executar trabalhos criativos importantes. (BODEN, 1999, p.151)

            Diante de um mar de conceitos acerca da criatividade, ancoraremos onde nos é mais adequado quando estamos inseridos no processo de criação colaborativa de roteiros audiovisuais para séries de televisão, as denominadas Writer’s Room, no Brasil, Sala de Roteiristas. Antes de esclarecermos do que se trata especificamente este fenômeno de escrita, iremos contextualizá-lo dentro do Sistema Modelo de Csikszentmihalyi.

O roteirista é uma pessoa criativa, seu ofício é criar personagens, imaginar cenas, desenvolver os diálogos, elaborar as tramas, as sub-tramas e construir todo um universo fictício. Este roteirista só é reconhecidamente uma pessoa criativa pois domina as técnicas de escrita, métodos e a linguagem audiovisual. O roteirista somente cria dentro de sua área com suas regras. Esta área pode ser ilustrada pela Sala de Roteiristas, um modelo de criação que possui seu próprio processo, regras, hierarquia, formatos, desenvolvimento de ideias e metodologia de trabalho. A Sala está inserida em um campo maior, que é o da mídia de difusão com seus executivos, patrocinadores, agência reguladora[3], produtores e audiência. Este campo será incumbido de julgar e validar os roteiros da série, criados pelo roteirista dentro da Sala, e, assim, levá-los adiante para a produção da série.

Figura 2: Sistema Modelo adaptado

            É pertinente aplicar o Sistema Modelo dentro deste contexto de criatividade baseado em técnicas de criação colaborativa. Em uma Sala de Roteiristas, um indivíduo criativo só o é pois faz parte de um sistema que engloba todas as etapas de criação, sabendo que elas não estão separadas umas das outras e ocorrem simultaneamente. Para ser criativa, a pessoa precisa internalizar todo o Sistema Modelo que faz a criatividade ser possível (CSIKSZENTMIHALYI, 1997).

A pessoa que quer fazer uma contribuição criativa não somente deve trabalhar dentro de um sistema criativo, mas deve também reproduzir este sistema mentalmente. Em outras palavras, a pessoa deve aprender as regras e os conteúdos de uma área, ao mesmo tempo em que conhece os critérios de seleção e as preferencias do campo. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997, p.47, tradução da autora).

            A Sala de Roteiristas como área de atuação é extremamente fértil. Constrói-se um ambiente favorável para gerar e desenvolver ideias, provocando criatividade por meio de métodos e conhecimentos já consolidados por outros autores, mas, sempre adaptando-se aos seus roteiristas, às diferentes personalidades criativas, à identidade do coletivo e às regras deste formato de trabalho criativo.

A existência de uma área de atuação é talvez a melhor evidência da criatividade humana […] Cada área expande os limites da individualidade e amplia nossa sensibilidade e habilidade de se relacionar com o mundo. Cada pessoa está rodeada por uma quantidade quase infinita de áreas que são potencialmente abertas para novos mundos e oferecem novos poderes para aqueles que querem conhecer suas regras. (CSIKSZENTMIHALYI, 1997, p.37, tradução da autora).

A Sala é composta por três ou mais roteiristas, podendo chegar a quinze profissionais, como é o caso da Sala da série Breaking Bad (2014), organizadamente chefiada por Vince Gilligan, o criador da ideia inicial (MARTIN, 2014). Gilligan, no entanto, só pôde tecer a complexa trama e os complexos personagens de sua série pois estava inserido na Sala de Roteiristas. A sua “ideia inicial” foi debatida por meses dentro daquela área de atuação e todas as camadas da história foram criadas e desenvolvidas de forma colaborativa, conforme análise do pesquisador Brett Martin, em seu livro: “Homens Difíceis: Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Man e outras séries revolucionárias” (2014). Naquela especifica sala, situada no centro de Los Angeles, indivíduos exerceram sua criatividade, e hoje sabemos que a ideia é inovadora, pois, como público, a julgamos como tal. Mas antes, a emissora norte-americana AMC aprovou a ideia e difundiu a série Breaking Bad, hoje uma referencia narrativa.

Tal como o deserto azul, que possui também a maleabilidade oceânica e suas correntes, a fluidez da água como metáfora é muito pertinente dentro do contexto da criação colaborativa. Vale ressaltar que o líquido que veremos a seguir nada se assemelha ao conceito de líquido de Zygmunt Bauman. Enquanto Bauman usa o líquido como efêmero, Steven Johnson o usa como elemento condutor, agregador.

A Sala de Roteiristas: Escritório líquido inundado de ideias

A Sala de Roteiristas é o nome brasileiro dado à Writer’s Room norte-americana, modelo de criação de roteiro em que o ambiente de trabalho, a sala, proporciona encontros e faz florescer boas ideias em grupo. O conceito de redes líquidas de Steven Johnson ilustra muito bem a sala de roteiristas como ambiente que acentua a capacidade natural do cérebro de estabelecer novos elos de associação (JOHNSON, 2001).

No livro “De onde vêm as boas ideias”, Johnson (2001) ressalta que, em geral, somos mais bem-sucedidos ao conectar ideias do que protegê-las. Para o autor, boas ideias podem não querer ser livres, mas querem se conectar, se fundir e se recombinar; querem se reinventar transpondo fronteiras conceituais e querem tanto se complementar umas às outras quanto competir. Conectar ideias e complementar sem competir também faz parte do trabalho dentro da sala de roteiristas.

A produtora executiva brasileira Jacqueline Cantore, pioneira na implantação do modelo de sala de roteiristas na programadora Globosat, descreve suas experiências em seu blog:

Criar um roteiro não é um processo linear e no writer’s room o retorno é instantâneo. Há um olhar crítico coletivo, não há distração externa alguma, e as ideias que não servem ao grupo,  comprometido única e exclusivamente com a história, rapidamente dão espaço para outras com mais força e substância. Não é uma rinha de galos, porque o ego fica do lado de fora e trabalha-se em cima de conceitos técnicos. A prioridade é a série, o autor são vários autores. O contraste de evolução para o processo individual é enorme. E é a melhor forma de criar na TV, um meio onde a colaboração é imperativa (CANTORE, 2014, s/p).

Neste contexto, Steven Johnson contesta o pesquisador de roteiro Robert Mckee (2015, s/p.), quando este afirma que escrever é um processo solitário, afinal, histórias e roteiros não são criados “em meio a uma festa”, e a maioria dos roteiristas tem personalidade antagônica e ninguém os quer por perto. Por outro lado, para Johnson (2001, p. 40), “O segredo de ter boas ideias não é ficar sentado em glorioso isolamento, tentando ter grandes pensamentos. O truque é juntar mais as peças sobre a mesa”.

O sólido, duro, estagnado e estático da criação solitária dá lugar ao movimento, ao múltiplo, maleável, ao líquido da criação em grupo. O fluxo social da conversa em grupo transforma esse estado sólido privado numa rede líquida (JOHNSON, 2001). O processo que nasce de uma criação colaborativa dentro da sala de roteiristas, um “escritório líquido inundado de ideias”, mostra-se, pois, muito rico.

A pesquisadora de roteiros da Universidade de Copenhagen Eva Novroup Redvall (2014, p.39), em artigo, frisa que “Inicialmente, os estudos da criatividade eram orientados pelo processo criativo individual. No decorrer dos anos, houve um crescente interesse em estudar grupos criativos .” Como exemplo, Redvall cita Vera John-Steiner, autora do livro “Creative Collaboration” (2006). A questão central proposta pelos estudos de John-Steiner é que as integrações colaborativas são as melhores formas de construir novos modos de pensar ou novos formatos artísticos. No trabalho colaborativo nós aprendemos de cada um ensinando o que sabemos (REDVALL, 2014), é um comprometimento com uma múltipla apropriação. Práticas solitárias são insuficientes para encarar problemas e desafios criativos. “Colaboração baseia-se em diferentes perspectivas e em diálogos construtivos entre indivíduos negociando suas diferenças, enquanto criam sua voz e visão compartilhada” (JOHN-STEINER, 2006, p.6).

John-Steiner sustenta-se, principalmente, nas ideias histórico-culturais de L.S. Vygotsky de que “atividades criativas são sociais, de que o pensamento não está confinado em um único cérebro/mente, e que o conhecimento está incrustrado no meio histórico e cultural onde ele surge” (JOHN-STEINER, 2006, p.5). Vigotsky entende que trabalhos artísticos, fórmulas matemáticas, mapas, e desenhos, todos contribuem para uma atividade representativa, para as múltiplas formas onde o eu e o outro estão construídos e conectados.

Em seu livro “Imaginação e Criatividade na Infância” (2014), Vigotsky diz que:

[…] existe de fato criatividade não só quando se criam grandiosas obras históricas, mas, também, sempre que o homem imagina, combina, altera e cria algo novo, mesmo que possa parecer insignificante quando comparado às realizações dos grandes gênios. Se considerarmos, ainda, a existência da criatividade coletiva, que reúne todas essas contribuições por si só insignificantes da criação individual, compreenderemos que grande parte de toda a criação humana corresponde precisamente à criação coletiva anônima de inventores anônimos.” (2014, p.5)

            Vera John-Steiner, ainda, cita Mikhail Bakhtin sobre experimentar o eu pelos olhos do outro: “Eu não posso fazer sem o outro; eu não posso tornar-se eu-mesmo sem o outro; eu preciso me achar no outro, achar o outro em mim.” (BAKHTIN apud JOHN-STEINER, 2014, p.5, tradução da autora).

A criação em sala de roteiristas transcende tanto a ideia individual quanto o conceito de autor, apresentando novas configurações do criar a partir de múltiplos autores e um único problema a ser resolvido: o desenvolvimento de uma série televisiva. Tal desenvolvimento compreende todas as etapas criativas, como sinopse, argumento, perfil das personagens, arco principal, escaletas e diálogos. Cada indivíduo criativo que atua nesta área está totalmente permeado pelos outros indivíduos criativos e a sala inunda-se de ideias.

O pesquisador britânico Peter Bloore em seu livro “The Screenplay Business: Managing Creativity and Script Development in the Film Industry” (2012) faz um panorama sobre os mais recentes estudos sobre criatividade e repensa determinados conceitos dentro do campo da construção fílmica. Sobre a criação em ambientes colaborativos, como o campo da indústria audiovisual, Bloore cita os estudos de Teresa Amabile sobre a importância de ter uma equipe interdisciplinar:

Amabile enfatiza muito a escolha da pessoa certa para o trabalho, de acordo com seus interesses pessoais e conjunto de habilidades, e coloca as tarefas certas para que elas sintam-se totalmente desafiadas. Ela também descreve a importância do trabalho em equipe que combina diversos backgrounds e habilidades. (BLOORE, 2012, tradução da autora)

Lembremos das “peças sobressalentes” de Steven Johnson. Parte da origem de uma boa ideia consiste em descobrir quais são as peças sobressalentes e quais podem ser reagrupadas em configurações novas e úteis (JOHNSON, 2011). Ora, se enxergarmos o roteirista como peça sobressalente, e a união das peças como uma reunião de um grupo mais eclético de ideias, poderemos pensar na figura individual do roteirista como componente chave para dar identidade ao grupo no qual trabalha. A força criativa de um grupo interdisciplinar, por sua vez, poderá transparecer durante o processo. Para Bloore (2012), a equipe começa a compreender a sua identidade, enquanto o senso de missão é construído e os membros decidem qual caminho traçar, aonde querem chegar e quais os procedimentos para resolver juntos os problemas propostos. E, acrescenta que:

Equipes são consideradas mais efetivas e mais criativas do que pessoas trabalhando por si só, principalmente se a equipe é montada com a correta variedade de pessoas com atributos variados e complementares. A soma de todas as partes foi considerada maior e mais produtiva do que o individual. (BLOORE, 2012, tradução da autora)

            Teresa Amabile argumenta também que habilidades cognitivas e traços de personalidade não são suficientes para florescer a criatividade; a pessoa também precisa estar intrinsicamente motivada: fazendo o que a inspira e o que realmente gosta (BLOORE, 2012). Administrar a criatividade, para Bloore, é encontrar o equilíbrio ao atuar de forma continua entre liberdade e controle. O ambiente da sala de roteiristas encoraja os indivíduos a acumular diversas experiências que irão potencializar sua criatividade. No caso, o roteirista, atuando de forma livre porém dentro de regras impostas pela metodologia de trabalho de uma sala de roteiristas, exerce sua criatividade dentro dos limites da área e do campo. Isso nos leva novamente ao Sistema Modelo de Csikszentmihalyi.

Terra à vista: o Sistema Modelo no oceano da criatividade

Pensadores contemporâneos como Steven Johnson, Eva N. Redvall, Vera John-Steiner e Peter Bloore, aqui citados, abordam a criatividade sobretudo a partir do coletivo. Ao navegarmos no deserto azul da criatividade estas pesquisas podem nos reconfortar, como quem escuta o grito de “terra à vista!” depois de um longo período em alto mar. E todos estes pensadores, por sua vez, sustentam-se em grande parte nas pesquisas acadêmicas de Boden, Amabile e Csikszentmihalyi, que enfatizam a ideia de que: para a criatividade ocorrer, os múltiplos atributos cognitivos e intelectuais de uma pessoa criativa precisam estar combinados com uma área apropriada e com um campo intelectual que a encoraje e que possa oferecer a recepção da criatividade. Portanto, a criatividade é parte de um extenso sistema e não é dependente da habilidade criativa individual.

Em seu livro, Peter Bloore (2012) propõe uma figura para ilustrar – à sua maneira – o Sistema Modelo de Csikszentmihalyi. Lembrando, antes, que nossa tradução para Field é Campo, Domain é Área, e Individual é a Pessoa, o indivíduo.

Figura 3: The systems view of creativity (BLOORE, 2012)

Em nota sobre esta figura, Bloore destaca que:

Para a criatividade ocorrer, um conjunto de regras e práticas devem ser transmitidas da área para o indivíduo. O indivíduo então deve produzir uma nova variação dentro do conteúdo da área. Esta variação deve ser selecionada pelo campo para que ela seja incluída na área. (BLOORE, 2012, tradução e grifos da autora)

            A forma com a qual Bloore representa o Sistema Modelo de Csikszentmihalyi difere-se do que apresentamos anteriormente (fig.1, p.5), já que a nossa proposta é a de englobar o indivíduo dentro da área e do campo, e que esse “englobar” seja ilustrado de forma clara e simples. É também importante contextualizar o Sistema Modelo, já que a área de filmes ou a de música popular, que são mais acessíveis ao público em geral, possuem um campo especializado notoriamente incapaz de impor uma decisão sobre quais obras são criativas (CSIKSZENTMIHALYI apud BLOORE, 2012). Com isso, entendemos que a avaliação do nível de criatividade de um projeto televisivo está mais nas mãos do público do que no campo profissional. Pensando neste ponto, consideramos a audiência como parte do campo que julga a criatividade do projeto (conforme ilustrado na fig.2, p.6), já que, na televisão, não podemos dissociar o resultado de audiência das decisões executivas e comerciais da emissora.

Para apresentar de forma mais clara e mais específica a aplicabilidade do Sistema Modelo para criatividade em sala de roteiristas, avistamos a série brasileira Supermax (TV Globo/2016) como um local pertinente para ancorar nosso barco.

A série Supermax não é somente uma novidade no âmbito da difusão, é também uma nova forma de criar conteúdo para a televisão brasileira, conforme publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo (2016, Ilustrada, C1): “Os roteiros da série Supermax foram escritos por seis autores em uma sala, à moda das writers rooms americanas, debatendo-se por horas, chefiados por Marçal Aquino, Fernando Bonassi e por José Alvarenga Jr.” O Jornal Estado de São Paulo (2016, Cultura) publica que:

Supermax é fruto de um processo inédito de criação, em esquema que se conceituou chamar de “writers room”, com mais de cinco profissionais gabaritados. É literalmente uma sala de escritores a trabalhar conjuntamente o desenvolvimento do roteiro final.

            Sabe-se que a TV Globo, mesmo com o maior expertise em telenovela no mundo, visou se inserir no mercado de séries para ampliar seu diálogo com o público mais jovem que migra para outras plataformas e para outros formatos seriados. Diante desta demanda, os executivos da emissora encomendam ao autor José Alvarenga Jr. um projeto de série inovador, para ser exibido na grade tradicional concomitante com a plataforma streaming Globoplay. Por sua vez, Alvarenga convida os autores Marçal Aquino e Fernando Bonassi para pensarem com ele esta proposta ainda embrionária, mas que deveria, inevitavelmente, por exigências da emissora, possuir um gênero diferente do que o adotado em sua programação (drama e comédia). Os três autores roteiristas desenvolvem a sinopse da série Supermax e contratam mais oito autores roteiristas para compor uma sala de criação e, nela, desenvolver a série. Além de Alvarenga, Marçal e Fernando Bonassi, a sala de roteiristas de Supermax contou com: Bráulio Mantovani, Carolina Kotscho, Juliana Rojas, Dennison Ramalho, Raphael Montes e Raphael Draccon.

Sendo assim, Alvarenga, aqui, será ilustrado como o indivíduo criativo central da vez, sabendo que o Sistema Modelo pode depois ser adaptado com outro roteirista da série ao centro. Pois bem, Alvarenga está inserido em uma área, a sala de roteiristas, que é composta por mais oito pessoas. Esta área é muito especifica e possui sua própria metodologia de trabalho e regras, e dentro dela a ideia inicial de Alvarenga será gerada e desenvolvida. Esta sala está situada dentro de uma esfera maior, o campo que irá julgar e validar o projeto, para transformá-lo em uma série – já que um roteiro não produzido não possui valor inerente (BLOORE, 2012).

Figura 4: Sistema Modelo adaptado para Supermax

            Neste caso, ampliamos mais o campo para poder englobar a audiência dentro das decisões internas da TV Globo, chefiadas pelo diretor de núcleo Guel Arraes e pela diretora de desenvolvimento artístico Monica Albuquerque. É claro que a audiência virá depois da exibição da série, mas ela não deixará de julgar, em outro nível e momento, a ideia como sendo criativa e inovadora, ou como não o sendo.

Esta série só foi possível ser realizada a partir deste modelo de criação onde pessoa (roteirista), área (sala de roteiristas) e campo (contexto televisivo) diluem-se em um só sistema criativo sustentável. O autor que se encontra ao centro do círculo, Alvarenga, internalizou de forma explicita e implícita todo o sistema modelo de criatividade, desde o momento em que recebeu a “encomenda” por parte do canal até o momento da entrega da série já desenvolvida ao canal.

O projeto Supermax insere, assim, a teledramaturgia da Rede Globo na ficção de gênero terror, suspense e sobrenatural, com elementos de reality-show. A série carrega fortes referências narrativas e visuais das séries americanas The Walkind Dead (2010) e True Detective (2014). Cada um dos nove roteiristas envolvidos na criação são reconhecidos por seus trabalhos anteriores dentro destes gêneros.

Nota-se que a televisão é talvez o ambiente mais propenso a grandes mudanças em formatos ou em combinação de gêneros, devido ao maior volume de recepção, às produções mais rápidas e baratas; aos retornos financeiros de um projeto inovador bem sucedido; ao diversificado uso de um mesmo protótipo; e à necessidade de originalidade em um mercado superlotado. (BLOORE, 2012, tradução da autora)

Esta experiência de criação fez com que a TV Globo desenvolvesse a “Casa dos Roteiristas”[4], implantada em uma mansão localizada na zona sul do Rio de Janeiro. Talvez este seja o maior resultado criativo da série Supermax. Sobressaiu o valor do trabalho criativo colaborativo conectado à necessidade de explorar um formato seriado que não era encontrado com frequência na programação do canal.  Desta casa dos roteiristas, recentemente inaugurada, pretende-se gerar um grande número de projetos inovadores no formato de séries com até 13 episódios, nos moldes da Supermax. Na casa ocorrem, simultaneamente, 11 salas de roteiristas chefiadas por diferentes autores da casa. O Jornal Folha de S. Paulo (2017, Ilustrada, C1) publica que:

A Globo cada vez mais vem investindo em ser uma produtora de conteúdo. Por isso, a emissora decidiu criar um espaço para fomentar a produção de séries e outros formatos curtos de dramaturgia semanal para TV aberta e fechada e para plataformas digitais. Em abril, começa a funcionar a Casa dos Roteiristas do canal, em um espaço no Jardim Botânico, no Rio, fora dos estúdios da Globo.

No entanto, a casa dos roteiristas é um projeto tão recente que não podemos ainda avaliar seu impacto no mercado. Mas, é interessante lembrar que, para Domenico De Masi (2001, p.475), “no caso dos grupos criativos, a primeira das obras-primas é justamente a sua própria organização”. De Masi define um grupo criativo por “sistema coletivo em que operam sinergicamente personalidades imaginativas e personalidades concretas, cada uma contribuindo com o melhor de si, num clima entusiástico, graças a um líder carismático e uma missão compartilhada” (DE MASI, 2001, p.594). E, ele, ainda, aponta que:

Na criatividade em grupo, justamente pela própria natureza da atividade coletiva, não são apenas as qualidades dos membros individuais que incidem sobre os processos ou sobre os produtos; quanto melhor for a interação entre os membros do grupo, melhor será entre o grupo e o mundo exterior. (DE MASI, 2001, p.480)

Percebemos que esta é justamente a proposta da casa dos roteiristas da TV Globo, que nada mais é do que um reflexo do sucesso do processo criativo em sala de roteiristas já experimentado mundialmente. O Sistema Modelo é tão versátil e abrangente que poderia facilmente ilustrar a casa dos roteiristas como sendo a área, cujo o indivíduo criativo continua sendo o roteirista e o campo ainda é o universo da emissora. A casa possui em suas salas diversos escritórios líquidos que por vezes se conectam entre si, já que boas ideias não querem ser estáticas, elas querer fluir como a água. Estes roteiristas, trabalhando em sua área, permanecem totalmente imersos no ato criativo, tornam-se absorvidos à um nível em que Mihaly Csikszentmihayi chama de fluxo criativo (BLOORE, 2012, grifo da autora). O trabalho criativo bem sucedido, ou seja, de fato considerado como tendo valor criativo, passa por este processo e consequentemente gera tal fluxo natural inerente às pessoas e também aos grupos criativos que criam de forma colaborativa.

O Sistema Modelo de Csikszentmihalyi pode ser replicado inúmeras vezes em diversas áreas de atuação, não somente no âmbito artístico, afinal, não está restrito a nenhum contexto específico, tal como a criatividade.

Retomando nossa metáfora, o Marinheiro, tendo explorado em parte a aridez aquática do deserto azul, percebe que mesmo sem poder visitar as profundezas do mar ele pode imaginar o  mundo que se faz embaixo de seu barco, e pode pisar em terra firme quando avista as ilhas com a qual se identifica. A navegação certamente continua, mas, somente a experiência de aportar em tais ilhas distantes e trazer o conhecimento delas para si já é mais um novo caminho traçado em sua rota criativa.

Citações:

[1] Cf. The Blue Desert: http://www.elasmo-research.org/education/ecology/ocean.htm e http://www.seashepherd.nl/toxic-gulf/specialisation-in-the-blue-desert.html acesso em: 12/07/2017.

[2] The System Model: Person; Domain; Field (Tradução da autora)

[3] ANCINE – Agência Nacional de Cinema. Disponível em: http://www.ancine.gov.br/

[4] Cf. Casa dos Roteiristas da Globo http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/globo-abre-casa-dos-roteiristas-e-investe-na-producao-de-novos-conteudos.ghtml acesso em: 12/07/2017

Referências:

BLOORE, Peter. The Screenplay Business: Managing creativity and script development in the film industry. Oxford: Routledge, 2012.

BRETT, Martin. Homens Difíceis: Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Familia Soprano, Mad Man e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014.

BODEN, Margaret A . Dimensões da Criatividade.  Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.

CANTORE, Jacqueline. “A Corrida do Ouro”. Disponível em: http://www.jacquelinecantore.com/

CSIKSZENTMIHALYI, M. Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention. New York: Harper Perennial, 1997.

DE MASI, Domenico. Criatividade e Grupos Criativos. Rio de Janeiro: Sexante, 2001.

JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

JOHN-STEINER, Vera. Creative Collaboration. Oxford: Oxford University Press, USA, 2006.

MESQUITA, Ligia. “Globo cria casa de roteiristas focando produção de conteúdo.” Folha de São Paulo: Ilustrada, C1, São Paulo, 19 de março de 2017.

MCKEE, Robert. Robert Mckee Story’s website. Disponível em: http://mckeestory.com/blog/

PADIGLIONI, Cristina. “Supermax: Globo reconhece necessidade de motivar novas gerações”. Estadão: Cultura, s/p, São Paulo, 01 de Julho de 2016.

REDVALL, Eva Novrup. “Scriptwriting as a creative, collaborative learning process of problem finding and problem solving.” Mediakultur, 34-55, 2014

SÁ PESSOA, Gabriela. “Globo segue tática da Netflix e antecipa série inédita na internet”. Folha de São Paulo: Ilustrada C1, São Paulo, 16 de Setembro de 2016.

VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

[1] Cf. The Blue Desert: http://www.elasmo-research.org/education/ecology/ocean.htm e http://www.seashepherd.nl/toxic-gulf/specialisation-in-the-blue-desert.html acesso em: 12/07/2017.

[2] The System Model: Person; Domain; Field (Tradução da autora)

[3] ANCINE – Agência Nacional de Cinema. Disponível em: http://www.ancine.gov.br/

[4] Cf. Casa dos Roteiristas da Globo http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/globo-abre-casa-dos-roteiristas-e-investe-na-producao-de-novos-conteudos.ghtml acesso em: 12/07/2017

 

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