Enquanto está em turnê na Paris dos anos de 1960, o proeminente bailarino Rudi, ouve de um colega de profissão: “O que você faz não é tecnicamente perfeito. Às vezes, é até desajeitado. Mas o espírito que se tem ao subir ao palco, isso é o mais importante”. E espírito não falta ao jovem camponês que passou pela miséria e se consagrou, primeiro na então União Soviética, depois no mundo, como o bailarino Rudolf Nureyev, cuja história foi narrada no filme O Corvo Branco (The White Crow), dirigido por Ralph Fiennes. Tenaz, perseverante e até mesmo petulante, Nureyev constantemente se insurgia de maneira inconcebível para o cidadão soviético comum. Mas isso porque era um artista luminoso, que estudava pinturas e esculturas ambicionando ir além da técnica e usar a dança como uma forma própria de interpretação. Uma lição de Aleksadr Pushkin, o professor de balé que Ralph Fiennes teve que interpretar pra conseguir financiamento para o filme, carente de um elenco de renome e capitaneado por um bailarino que nunca havia atuado.
Vale lembrar que Aleksadr Pushkin foi responsável pela formação de dois dos maiores talentos do balé clássico da segunda metade do século 20, os russos Rudolph Nureyev e Mikhail Baryshnikov. Não por acaso, eles se rebelaram contra a repressão política da antiga União Soviética e pediram asilo, respectivamente, na França e no Canadá. Para compor seu Pushkin, Fiennes recebeu dicas preciosas de Baryshnikov.
O filme registra a primeira viagem de Nureyev (estréia promissora do ucraniano Oleg Ivenko) a Paris, aos 23 anos, para se apresentar com a conceituada Academia de Dança do Balé Kirov, em 1961. Acolhido pelas autoridades francesas, ele se torna ícone mundial da dança e vive no país até morrer em 1993, aos 54 anos, vítima da Aids. O roteirista David Hare (O Leitor) inspira-se no livro Rudolph Nureyev: The Life, de Julie Kavanagh, mas se atém à humilde infância e à agitada juventude, período em que Nureyev aproveitava os intervalos dos rigorosos treinos para sorver a cultura parisiense.
Seu deslumbramento diante das artes do Museu do Louvre, da arquitetura e dos monumentos da Cidade Luz contrasta com a imponente presença no palco e a forte personalidade. O bailarino vara a noite com seus novos amigos franceses pelas mesas de bares e clubes, deleite proibido pelos seguranças da companhia. Fiennes filma o encontro de Nureyev com a liberdade de si próprio e de sua arte.
Mas é o roteiro de David Hare, conhecido por seu trabalho no teatro inglês, que consegue dar conta da história de Nureyev, usando flashbacks que vão desde o seu nascimento no Expresso Transiberiano até sua dissidência na França. Talvez alguns pontos da biografia poderiam ter sido priorizados no roteiro, como a relação do protagonista com o pai, retratado muito brevemente como alguém que despreza o filho, mas na verdade foi contrariado e até desafiado com as aulas de balé as escondidas.
Mas Fiennes soube explorar muito bem a atuação de Ivenko, que defende seu papel com garra apesar da inexperiência. E ambos conseguem controlar o viés político durante a maior parte do filme, somente deixando-o explodir no final, quando se pode sentir na pele a angústia que os dissidentes suportavam quando pediam asilo.
O Corvo Branco, enfim, pode não ser um filme notável como Nureyev, mas narra muito bem à história daquele que foi um divisor de águas no balé clássico. E ele, sim, é memorável.
Daniela Grieco Nascimento e Silva