Em 1962, aqui do lado de Uruguaiana, em São Borja, surgiu um grupo musical e cultural, batizado por Apparício Silva Rillo com o nome “Os Angüeras”. Talvez você não os conheça. Para alguns, eles talvez sejam velhos demais, mas certamente você já ouviu alguma canção destes “velhos”. Para termos uma ideia da importância dos Angüeras, eles são os criadores do Festival da Barranca, que acontece em São Borja desde 1972.
A Barranca é um acampamento musical na beira do Rio Uruguai, onde acontecem experimentos artísticos, letras, poesias, músicas, todos voltados para a cultura nativista. Uma pescaria de sonhos e de arte.
Os Angüeras também tem uma história junto do principal festival de música de Uruguaiana, tanto é que a primeira apresentação da 1° Califórnia da Canção Nativa foi feita por eles. Os Angüeras subiram ao palco com João Campeiro (1971, composição de Apparício Silva Rillo e José Gonzaga Lewis Bicca). E foi justamente esta canção que me trouxe até aqui.
Este texto é sobre ouvir música enquanto se prepara o fogo do assado, quando a gente deixa a alma sair sem pressa e dar uma olhada de longe na vida.
Para os Guaranis, as almas podem sair e voltar, mesmo em vida. Um Angüera é uma alma que deixa o corpo, no entanto, ela não vai embora, tão pouco fica vagando por aí, um Angüera é uma alma que sai e retorna, alma que não aceita o fim, peleia diante da morte, e quando volta ao corpo, sempre retorna diferente. Volta mais forte. Volta mais viva.
No último domingo, enquanto fazia o fogo para o churrasco e a Zero Hora queimava por debaixo da lenha seca de espinilho, num daqueles momentos em que tu fica olhando para o fogo, vagando sem pensar objetivamente em nada, foi que ouvi os versos de “João Campeiro”. Há uns anos que não ouvia a triste e natural sina de João diante da finitude da vida. E os versos de Apparício me levaram do corpo e depois me trouxeram de volta, feito um Angüera.
João Campeiro é um destes tantos homens e mulheres que ainda vagam pela vida, que foram e ainda são trabalhadores, pessoas honestas e envelhecidas que seguem pelejando a vida, ora sólitos na beira do fogo, ora rodeados de filhos e netos. São pessoas que ainda ardem em vida e tem medo da morte, ou que já cansados, anseiam para que esse momento chegue logo. Em comum, o fato de que estão vivos.
Vivem na eminência do fim e, embora esqueçamos, todos vivemos assim. A vida de cada um destes homens e mulheres é “como um grito de reponte”, todos num mesmo rebanho de vida, cujas almas lutam nos corpos velhos de sina. E ser velho nesses nossos dias não é nada fácil, não é fácil.
A forma com que nossos velhos estão sendo tratados nesses dias de pandemia é de uma tristeza, de um desrespeito criminoso. Em Uruguaiana, tornou-se natural lermos os anúncios da Santa Casa, boletins dando conta que mais um idoso se foi. Todos os dias, um se vai. O canção João Campeiro é um grito de reponte de um rebanho de velhos sendo levados para o matadouro, um grito que leva a alma e não traz de volta.
A naturalidade, quase desprezo, como as mortes dos idosos pela Covid-19 é vista, deixa sempre a impressão de que a doença só levou mais “um boi na tropa”, um João Ninguém qualquer. Acontece que o vírus levou, na verdade, não um boi da tropa, mas “o homem que foi João”.
Cada velho morto por esta doença, cada vida que se vai diante da inoperância governamental e da nossa incompetência enquanto sociedade, leva junto um pedaço de nossa história. Nossas histórias de vida, de nossas famílias, nossa história enquanto comunidade.
Os elevados números de idosos mortos pela Covid-19 são a demonstração do valor baixo que damos para nosso passado. E nesses dias pandêmicos, muitos só querem o futuro, sem perceber que o presente sempre é feito de passado.
Os homens jovens, as mulheres jovens, seguem por aí, vivendo suas vidas desmascarados, nas ruas, bebendo, festejando clandestinamente nas noites, nos pátios, nas calçadas. Os jovens inconsequentes são o principal grupo de risco, pois colocam em risco todos ao seu redor. E o rebanho de velhos, ruminando o tempo, mateando em casa, apenas espera, espera que o filho, o neto, o sobrinho chegue carregando num abraço mortal de amor o vírus do final. De um final antecipado. Fim que não deveria ser assim.
E na minha casa a lenha seguia incandescente na churraqueira, o jornal sumindo, queimando as notícias de mais idosos mortos pela Covid-19. No calor da brasa eu seguia fora do corpo, perdido na letra do Rillo.
“E no entretanto, no repente deste grito. O João campeiro vai sumindo, já se foi. Ele que outrora repontava o boi na estrada, vai ao reponte estrada afora igual ao boi”.
“Ninguém tem culpa, João. Ninguém. Ninguém tem culpa, João Ninguém. Teria que ser assim, tudo que nasce um dia tem fim”.
Alguns dirão que eles iriam morrer de qualquer maneira. Se esse é o pensamento, nenhuma vida deveria ser lamentada quando perdida. O sentido da nossa lida não é a finitude da vida, importa mais a tropeada do que a porteira da chegada.
Pobre João. Como tantos de barbas e cabelos brancos, viveu com a alma em luta para que nossa sociedade tivesse uma situação melhor de vida, morreu entubado, sozinho e sendo culpado pela vida que nos deu. “Ninguém tem culpa João”, diz o verso da canção. Não teria culpa, isso se tua morte fosse natural. Se “tudo que nasce um dia tem fim”, o teu fim, João, foi antecipado. Talvez, tua morte não tivesse “que ser assim”.
Temos culpa, João. Os governos tem culpa. Os que negam a doença tem culpa. Os que se omitiram de comprar vacinas tem culpa. As pessoas que não se cuidam tem culpa. Os que não querem se vacinar tem culpa. Os que usam a política para negar o afastamento social ou para indicar tratamentos que não funcionam, todos eles tem culpa. A vacina chegou atrasada, apareceu na porteira bem na hora em que você, meu velho amigo, já se foi.
E eu fiquei lá, parado, olhando para o fogo do velho espinilho, até o fim da canção. E eis que a letra de Apparício Silva Rillo gritar um último reponte. Lembrar que é preciso voltar ao corpo. Trazer a alma de novo, mais forte, mais viva, como luz que clareia a sombra mais escura. Enquanto a lenha queimava na churrasqueira, fui voltando:
“Semente boa que deu flor e que deu fruto. Planta no campo que deu sombra e que há de dar. O derradeiro galho seco para o fogo, onde o João novo que nasceu vai se aquentar”. Que versos os velhos Angüeras nos deixaram! Precisamos voltar. Habitar de novo a vida com a alma e fazer andar novamente o corpo.
E que essa vacina, que ainda aos poucos chega na Fronteira, sirva para nos fazer voltar ao sentimento de sociedade. Habitar um mesmo corpo social é assumir juntos as mesmas responsabilidades.
Aos meus amigos que perderam seus avós, seus pais e mães para este vírus, que a saudade dos nossos velhos nos vacine para a vida do amanhã e que suas memórias sejam as lenhas secas de um braseiro para nos “aquentar” no que restar do nosso tempo.
Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.