“Leia roteiros”. Por mais que isso seja um dos mantras para todo roteirista aperfeiçoar constantemente seu ofício, a verdade é que eu tenho cada vez menos o hábito de ler roteiros. A desculpa é aquela eterna que serve pra tudo que a gente não faz na vida, a “falta de tempo™”. Acabo lendo quando sou contratado para realizar consultorias, mas daí é outro rolê, já que o projeto ainda não foi filmado e estou em busca de problemas e caminhos para solucioná-los. A bem da verdade é que ando com saudades de ler pelo BEL-PRAZER de acompanhar uma história bem contada no formato de um roteiro, sem uma obrigação direta de um trampo.
É importante dizer que não existem muitos roteiros publicados como livros. Então, sempre que encontro algum, acabo comprando por impulso ou quase como um ato de resistência.
E muitos deles acabam só enfeitando a estante e acabo nem lendo. Resolvi tomar vergonha na cara e fazer este DESAFIO PESSOAL de ler um roteiro da minha coleção por semana (ou a cada 15 dias, sem pressão pô) e, pelo menos, escrever um par de parágrafos sobre a experiência. Neste texto de estreia acabei me alongando mais do que gostaria ou deveria, mas é o que temos para oferecer no momento.
[Vale salientar que em formato PDF se encontram aos montes roteiros em inglês de filmes e séries americanos na internet. Já com relação a obras brasileiras é um pouco mais complicado, mas ainda se acha alguma coisa. E nós, no FRAPA 2021, fizemos nossa parte e reunimos os roteiros de 4 grandes filmes recentes, exibidos na nossa Mostra de Longas. Você pode baixar eles AQUI:
https://frapa.art.br/mostra-de-longas ]
JULES E JIM
Resolvi começar por este filme que amei na época que vi, mas isso deve fazer já uns bons 20 anos, então não lembrava de muita coisa. Esta publicação da Zahar, traduzida para português, é DEVERAS interessante, pois traz, em sua primeira metade, o romance escrito por Henri-Pierre Roché e, na sequência, o suposto roteiro do filme. Também apresenta um texto curto do Truffaut falando um pouco sobre o processo de adaptação da obra. Ele conta que achou o romance meio por acaso em uma livraria, gostou do título (que é ótimo diga-se de passagem) e foi fisgado ao ler na contracapa que era o livro de estreia de um autor de 76 anos, com pinceladas autobiográficas. Este era pra ter sido o primeiro longa de Truffaut, mas acabou sendo o terceiro, lançado em 1962 e, infelizmente, o Roché morreu antes, sem ter assistido e nem contribuído na adaptação.
Sobre o roteiro que vem depois do romance, confesso que fiquei um bocado frustrado ao perceber que era uma decupagem feita por outra pessoa em cima do filme pronto e não o roteiro de filmagem escrito pelo Truffaut e por Jean Gruault.
Parece que até existe esse “roteiro quente” publicado em inglês, mas não consegui descobrir ao certo e muito menos catar esse PDF nos confins da web. Esse seria o material que interessa ao estudo do roteirista, pra apreciar como as cenas foram escritas antes da produção, o ritmo, a ordem original, os diálogos que mudaram, as cenas que caíram, todas descrições, enfim tanta coisa… se é pra ler um roteiro meramente decupado eu particularmente prefiro assistir ao filme e beijo. Mas, desta vez, optei por seguir o fluxo da publicação e ler este tal “roteiro decupado” (como é anunciado no sumário, mas não na capa) para relembrar todo filme. Conta com diversas fotos ilustrando algumas das cenas e eles, inclusive, optaram por descrever até os movimentos de câmera, imagens de arquivo, em uma formatação meio esquisita.
Sendo o mais sincero possível, se fosse para analisar somente este “roteiro”, eu nem estaria escrevendo este texto. Porém, não acho que foi um tempo jogado no lixo justamente por conta do romance. Acabei tendo uma bela aula de adaptação ao ler um em seguida do outro. A palavra-chave é SÍNTESE e como é difícil saber escolher o que é mais importante e imprescindível para entrar num filme. Fica como nota mental que não é feio simplificar.
O romance é muito gostoso de ler e relativamente curto: dividido em três partes com cerca de 50 páginas cada e diversos sub-capítulos curtinhos. Porém, com muitas AÇÕES e muitos anos se passando ao longo da história, o que por si só já é desafio e tanto para adaptação.
O primeiro capítulo intitulado “Jules e Jim” foca na amizade dos dois, e é quase o pré-filme e também os primeiros minutos da película. Não é à toa que o romance começa em 1907 e o filme em 1912 (minha memória me traiu tanto que eu tinha uma vaga lembrança do filme se passar na década de 1960 e não que era “de época”, talvez por conta das atitudes mais liberais dos personagens). Interessante que muitas das situações que Jules e Jim vivenciam com outras garotas nessa parte serão adaptadas posteriormente para a personagem da Jeanne Moreau.
Ainda na primeira parte do livro, a grande paixão da vida de Jules é a alemã Lucie, que não aceita o pedido de casamento dele. Jules insiste então para Jim se casar com ela, para poder seguir com Lucie presente em sua vida. O bróder até acata o pedido, mas depois de um tórrido romance, essa relação termina — como as demais neste capítulo. Tudo muito frenético (agilidade essa que também veremos no filme de Truffaut).
No final do capítulo, os amigos vão pra Grécia e descobrem a tal estátua com o mesmo sorriso que vão encontrar no rosto de Kathe e que vai enfeitiçar os dois. Um detalhe que me chamou atenção é que Roché sempre chama de “sorriso arcaico” e no filme foi transformado em “sorriso tranquilo”, bem menos poético.
O segundo capítulo do romance é justamente intitulado “Kathe”, quando essa mulher surge como um furacão para não mais perder o protagonismo da história. A personagem é originalmente alemã e deve ter mudado para francesa (Cathe com “C” daí) no filme por conta da escolha da Jeanne Moreau — o que acho justíssimo. Nesse capítulo, Kathe se envolve, casa e tem duas filhas com Jules, vem a I Guerra e a partir daí, quando se separam, o foco é na conturbada relação dela com Jim. Essa relação Jim/Kathe, recheada de conflitos (outros amantes, dificuldade de engravidar) segue no último capítulo intitulado “Até o Fim”. Minha impressão é que Jules é quase um coadjuvante de luxo nestas duas partes — e ainda sim um personagem muito interessante.
Eu não vejo o romance como um triângulo amoroso, pelo menos não da forma tradicional, pois em nenhum momento do livro os dois amigos disputam Kathe ou qualquer uma das mulheres. Nunca o outro é um empecilho, não parecem sentir ciúmes e em muitos casos até acontece um incentivo mútuo para se relacionarem com as mesmas garotas. E sempre com todos envolvidos a par, sem segredos, e aparentemente confortáveis com estas relações não-monogâmicas. No final das contas é uma história sobretudo sobre amizade destes dois sujeitos (e da relação deles com Kathe). Acho até engraçado que o subtítulo do filme no Brasil é “Uma mulher para dois”, que poderia muito bem ser o título de uma Sessão da Tarde.
A minha sensação é que os três personagens principais são muito mais complexos no livro, especialmente Kathe. Não entrarei aqui naquela famigerada discussão “o livro é melhor que o filme” até porque não temos como comparar maçãs com grampeadores. É mais uma questão de TEMPO e neste caso o livro ter mais situações e conflitos para explorar os personagens.
Por exemplo, assim que Jules apresenta Kathe pra Jim, é a única vez que ele fala “Essa não, Jim!”. No filme, esse mesmo momento não tem tanta potência, pois não temos conhecimento de todo o histórico da amizade dos dois, principalmente da situação “Lucie”. Fico até pensando se hoje em dia alguma produtora francesa pensa em adaptar “Jules e Jim” como uma série, mas talvez não seja uma boa ideia, não sei…
Truffaut conta que sabia o livro de cor, marcou as partes que mais gostava, fez diversas anotações e aí passou pro Jean Gruault, que em cima disso, fez uma versão de 200 páginas. Truffaut pegou essa versão e trabalhou em cima, com tesoura e cola, literalmente. E é até engraçado como esse roteiro usa e abusa da Voz em Off do narrador, na maioria das vezes com passagens ipsis litteris do romance, algo que é quase um tabu quando falamos em adaptações, mas que nesse caso cai como uma luva. Até o Scorsese já comentou mais de uma vez como diversos filmes seus tiveram narrações influenciadas por “Jules e Jim”. O narrador aqui ajuda a avançar no tempo, nos diz o que os personagens estão pensando, resume situações e tudo incrivelmente funciona de maneira orgânica. Obviamente que a direção do Truffaut tem um peso grande nisso, mas não é meu foco aqui.
Por fim, vale dizer que Truffaut utiliza quase todos os momentos icônicos do livro, desde o pulo no Sena de Cathe até o desfecho trágico. Tá tudo ali. Ele conseguiu limpar, selecionar e adicionar coisas novas, fazendo alguns rearranjos muito competentes. Eu poderia seguir escrevendo mil coisas sobre essa brilhante adaptação, mas vou finalizar por aqui, recomendando demais a leitura desse belo artigo do Stuart Y. McDougal : https://scrapsfromtheloft.com/movies/truffaut-jules-et-jim-adaptation-from-henri-pierre-roche-novel/