Entrei com o caiaque e remei uns duzentos metros para dentro do Uruguai, a correnteza era muito forte. Eu precisava dar cinco ou seis remadas para progredir uns dois metros. Descobri que remar longe da costa é sempre mais difícil, aprendi isso num domingo com vento, nunca mais cometi o mesmo erro.
Voltei. Virei o barco na direção da ponte internacional. Fui rumo ao antigo “Cortado”, uma pequena área alagada que se forma entre o rio e o bairro Mascarenhas de Moraes, também conhecido como Marduque.
Fui remando sem pressa, sem muito objetivo, sei apenas que fui subindo o rio Uruguai. Eu e o Cenair Maicá (1947-1989). Sim, sempre que entro no Uruguai ele vai comigo. Tem sempre um lugar para ele, bem sentado ao lado das minhas memórias. E o Cenair sempre vai cantando a mesma canção: “Os balseiros do rio Uruguai”.
“Oba, viva, veio a enchente. O Uruguai transbordou, vai dar serviço pra gente!”
Entre uma remada e outra, eu pensava comigo: “Como pode o Cenair Maicá nunca ter cantado na Califórnia da Canção Nativa?”. Hoje, oito anos depois, percebo que não era esse o objetivo do Cenair, parece-me que ele não estava muito interessado em fazer música para os festivais.
Cenair Marcá queria mesmo era cantar a vida ao redor do rio, falar das suas memórias de criança ribeirinha, da vida missioneira e das dificuldades da lida fronteiriça. Cenair queria mesmo era cantar nossos problemas sociais, dizer sobre como os missioneiros eram desvalorizados na cultura gaúcha. Escrever sobre como o indígena era um herói nas páginas dos livros e ao mesmo tempo um marginal vendendo cestas nas calçadas das ruas.
E sigo remando em direção ao Cortado.
Num passado não muito distante, o Cortado era um dos lugares onde as balsas de pranchão e de toras de árvores ficavam atracadas.
Quando as cidades da costa do Rio Uruguai foram se formando, desde meados do século XIX, a madeira era material básico para tudo. A madeira servia para o carvão dos vapores, para abastecer os fogões das cozinhas, para fazer embarcações, casas, câmaras de vereadores, igrejas e galpões.
Até os anos 1950, o transporte e a extração de madeira geravam muitos postos de trabalho, eram parte da economia local.
As balsas, as mais rudimentares, eram feitas apenas com toras de árvores, no centro geralmente havia uma espécie de toldo ou barraca, lugar onde o balseiro se protegia do sol e da chuva. As madeiras das balsas eram retiradas das florestas próximas das margens do rio. Cenair me canta no ouvido que eram espécies como “cedro, angico e canjerana”.
Centenas de pessoas se dedicavam ao trabalho de corte e transporte das árvores por dentro dos matos até a beira do rio e seus afluentes.
No período em que o rio estava baixo, as toras eram deixadas em suas margens para secar e, depois, eram amarradas em forma de balsas, em estruturas que podiam ser pequenas ou ter até mais de 50 metros de comprimento.
Uma vez que os troncos estivessem secos, quando a época das cheias chegasse, as toras boiariam, amarradas umas nas outras e poderiam ser levadas para as cidades e estâncias que ficavam nas margens do Uruguai.
As balsas chegavam no cortado, vindo de Santo Tomé, São Borja e Itaqui, outras vinham das bandas do Paraná e traziam a madeira de pinho. Haviam balseiros que, além da madeira, traziam produtos contrabandeados da Argentina, farinha, graxa de cerdo, bebidas, produtos que também eram vendidos em cada parada.
Por vezes, algumas balsas ancoravam quase que se desmanchando, é que na descida do rio Uruguai elas enfrentavam tempestades muito fortes e as amarras das toras acabavam se soltando, quando isso acontecia o prejuízo era grande, especialmente, se os pranchões se soltavam, pois ao contrário das toras, eles acabavam afundando
E eu sigo remando por entre as balsas da minha imaginação, todas próximas da margem, as crianças correndo pela costa em festa e subindo por sobre os troncos de árvores, correndo por sobre as madeiras dos pranchões, desprovidas de medo ou qualquer sensação de perigo, jogando-se na água e subindo novamente.
Até os anos 1950, mesmo depois da inauguração da ponte internacional (1947), o Cortado seguiu sendo utilizado como um atracadouro antes do porto.
No Cortado as balsas também ficavam esperando para descer o rio um pouco mais, até perto de onde era a antiga “destilaria de petróleo”.
Era perto da destilaria que as balsas ficavam esperando pelas chalanas, barcos menores que faziam o transbordo da madeira para a costa.
Carroças aguardavam na margem para levar os pranchões para as madeireiras e serrarias. Já os troncos precisavam ser cortados em pranchões ou fracionados em partes menores para só depois serem transportados.
Na costa também ficavam várias estruturas, feito grandes cavaletes que eram capazes de sustentar por cordas e roldanas as imensas toras.
Uma vez erguidas as toras, um homem subia com uma serra e começava a abrir os pranchões. Na parte de baixo da estrutura, segurando a outra ponta da serra, mais um trabalhador completava o árduo serviço. O homem que estava em cima puxava a serra enquanto que o homem de baixo a empurrava para cima, e depois ao contrário, dezenas e dezenas de vezes. Quantas casas foram construídas em Uruguaiana com as madeiras vindas pelo rio?
Quantas casas, hoje parte do nosso patrimônio histórico, ainda tem nos seus telhados, por debaixo das telhas portuguesas, a firmeza dos cedros, dos angicos e canjeranas que aqui chegavam pelas enchentes?
Enquanto as balsas atracavam, a cerca de uns 500 metros do Cortado começava um projeto que mudaria a história brasileira.
Era um empreendimento de cinco empresários, dentre eles havia o argentino Eustáquio Ormazábal e o brasileiro João Francisco Tellechea, fronteiriços que criaram a primeira destilaria de petróleo do Brasil: A Destilaria Rio-Grandense de Petróleo S/A.
A destilaria iniciou as suas atividades em 1933, com grandes expectativas de geração de empregos e desenvolvimento econômico. E foi logo em seguida à abertura que se viu, em novembro de 1934, nas margens do rio Uruguai, uma destilaria produzir os primeiros litros de gasolina feitos no Brasil.
Era um tempo em que a Petrobrás sequer existia e importávamos todo o combustível que consumíamos. Em 1935 a destilaria uruguaianense já possuía cerca de 200 funcionários e conseguia entregar mais de 400 barris de combustível por dia.
Não tardou para que a destilaria começasse a produzir outros derivados de petróleo, querosene, aguarrás, diesel e vários tipos de solventes.
Enquanto as balsas com madeiras desciam o rio, da Argentina vinham barcos tanques, chamados de “chatas’tanque”, lotados com petróleo equatoriano. O petróleo saía do Equador e vinha de trem pela Argentina, depois, em portos correntinos eram colocados nas “chatas’tanque” e levados até a destilaria de Uruguaiana.
Além de gerar empregos na cidade, a destilaria também gerava empregos no país vizinho, pois era preciso toda uma rede trabalhadores para que o petróleo chegasse até à margem brasileira do Rio Uruguai.
Tudo parecia ir muito bem, a produção crescendo e o consumo dos produtos gerando lucro, mas a destilaria acabou interrompendo seus trabalhos poucos anos depois de aberta. Isso se deu após uma decisão do governo Argentino que proibia a reexportação do petróleo e, com isso, a chegada de matérias primas até Uruguaiana. Em 1936, sem poder receber o petróleo do Equador, impossibilitada de funcionar, a destilaria parecia fadada ao fechamento. No entanto, ela recebeu um novo e importante impulso, era a parceria de investimentos de empresários uruguaios, com isso, a destilaria acabou deixando Uruguaiana.
Praticamente todos os equipamentos foram levados para a cidade de Rio Grande, a nova destilaria foi erguida num grande complexo industrial feito numa faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o mar, surgia assim uma das maiores empresas brasileiras: a Ipiranga S/A. Sabe a frase “pergunta no posto Ipiranga”? Pois tudo começou na beira do rio Uruguai.
Logo em seguida, em 1938, o governo de Getúlio Vargas nacionalizou a empresa e retirou da gestão os sócios que não eram brasileiros. Seguiram na administração as famílias uruguaianenses que iniciaram o projeto. A empresa não parou de crescer. Em 1975 um incêndio pôs fim às ultimas atividades realizadas nos prédios da destilaria em Uruguaiana.
Hoje em dia os prédios e algumas estruturas da antiga destilaria uruguaianense seguem na margem do rio, ainda se consegue ver um e outro oleoduto que ficou. Os prédios, abandonados por bastante tempo, agora são administrados pelo poder público municipal. Sempre que passo por ali, entre uma remada e outra, fico pensando no “se…”. E se a destilaria não tivesse parado suas atividades? Como seria a nossa região? Nunca saberemos.
De volta ao rio Uruguai. Já passei pelo Cortado e sigo remando e cantando a música de Cenair Maicá: “Vou jogar minha balsa no rio, vou rever maravilhas que ninguém descobriu.” Faço o caminho dos Vapores, Salto Grande é para o outro lado, eu vou subindo na direção de Santo Tomé.
Os Vapores eram embarcações que dividiam as águas do Uruguai com as balsas dos madeireiros e as chalanas dos pescadores e contrabandistas. Elas funcionavam como trens ou ônibus, levando pessoas e mercadorias rio acima. Os barcos passavam por São Marcos, Itaqui e São Borja e ligavam estas cidades e suas populações. Em 1912 um dos Vapores mais conhecidos era o Vapor Rio Grande, ele subia o Uruguai e ia deixando um rastro de fumaça.
O Rio Grande fazia paradas em vários locais, deixando e pegando pessoas pelo caminho, algumas delas embarcavam vindo em chalanas. Como eram barcos de grande porte, os Vapores precisavam navegar pelo canal do rio, necessitavam de um local profundo, do contrário acabariam encalhando durante a subida do rio e isso também impossibilitava de chegar muito perto das margens.
E eu sigo remando rio acima. Pouco mais de 500 metros depois do “Cortado”, grandes brechas vão surgindo na encosta do rio, as árvores que já eram poucas, desapareceram.
Com a retirada constante de lenha, as balsas madeireiras acabaram com a mata ciliar. Retirou-se tanta madeira da costa, que hoje só é possível ver o campo. É que depois dos anos 50, as lavouras de arroz deram o tiro de misericórdia.
O desmatamento para abrir locais de plantio e áreas para irrigação terminou com o que restava de mata. Com a erosão das margens, o canal do rio Uruguai se encheu de areia e do lodo que veio das margens, com isso terminaram também as viagens dos Vapores.
Em tempos de seca, quando remo em meu caiaque, tão logo passo pelos pilares da ponte eu encontro diversos bancos de areia, locais em que é possível descer do barco e ficar com a água pelo joelho. Pobre rio Uruguai.
Cansado, desisto de remar até a bomba, um motor que puxa água do rio para as lavouras de arroz do lado brasileiro. Lembro de uma pesquisa feita na UNIPAMPA sobre como os alevinos, os filhotes dos peixes, são sugados e mortos por estes motores, milhões por ano. E culpamos os pescadores artesanais pela diminuição das espécies. Remo uns metros para dentro do Uruguai e deixo a correnteza me levar de volta.
Enquanto retorno, imagino-me rio acima, anos atrás. Vendo o Cenair Maicá criança, cruzando o Uruguai de chalana com o pai, o Seu Nandico Maicá, levando chibo de um lado para outro.
Posso ver o Cenair na beira do rio, aprendendo violão com algum peão paraguaio, crescendo nos acampamentos de extração de madeira em Misiones.
Quase posso ouvir, misturados no barulho do rio, a gaita abafada dos bailes do Sapucay. Dizem que sempre que Seu Nandico queria chibear mercadorias, ele pedia para seu amigo Sapucaia fazer um baile em casa.
Enquanto o baile do Sapucay acontecia noite adentro, Seu Nandico fazia o contrabando de produtos da Argentina sem ser incomodado pelas autoridades e garantia assim o sustento da família.
E o rio Uruguai vai me deixando ir lentamente. Passam por mim, mais para o meio do rio, dois grandes troncos de árvores. Eles vão boiando, parecem mais apressados que eu, vão pela correnteza do centro de algum canal e levam na carona um biguá.
Teriam àqueles troncos partido lá da região das Missões? Quem sabe, estariam neles dois as memórias de outras gentes, como Noel Guarani e Jaime Caetano Braun? Quem me dera, quem me dera eles fossem dois troncos missioneiros…
No fundo, sei que eles eram apenas duas árvores cansadas, vencidas, como tantas outras, cujas raízes costeiras se entregaram diante do nosso descaso e da erosão das nossas ganâncias.
O rio ficou em silêncio. Ali, joguei minha alma no rio, feito uma balsa e desci de volta. O Cenair já não voltou cantando.
Voltamos os três, pensativos e melancólicos. Cenair, o rio e eu.