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JANELAS E DEMÔNIOS POR MELINA GUTERRES

João levantava pela manhã já com um suspiro, como quem diz “ah mais um dia”. Escovava os dentes, observando no espelho as entradas que cresciam. Seu avô era careca, seu tio também, mas bem que ele poderia puxar ao seu pai a quem até hoje não faltava cabelo. Pela manhã, então, culpava a genética. Arrumava suas coisas e ia trabalhar. Ao dirigir, culpava o trânsito pelo atraso. Nunca conseguia se organizar para sair 5 min mais cedo. Na sua equipe de trabalho costumava adjetivar para si mesmo cada colega: 1. A louca – na verdade, uma mulher livre, independente, bem sucedida e sua chefe. 2. O submisso – um pai de família que passava mais horas trabalhando e ganhava o dobro do seu salário. 3. O chato – aquele que cobrava sempre suas responsabilidades. 4. A crente – aquela que não se sujeitava às mentiras pequenas, muito menos às grandes. 5. A iludida – aquela que era um poço de criatividade e vivia dando boas idéias sobre gerenciamento de crise. Essa, na verdade, era a que ele mais invejava, pois suas ideias, as quais ele considerava malucas, sempre davam mais certo que as dele –  geralmente  mais conservadoras e sem muitos riscos.
Já era quase meio-dia, quando João saiu uns 10 min antes do expediente. Foi almoçar sozinho, sua manhã não tinha rendido muita coisa, ele também culpava a ex-namorada que se mudara há 5 meses para Paris em função do doutorado. A comida naquele dia, especialmente, parecia pior. Reclamou ao garçom,  ao gerente e ainda não queria pagar. A tarde passou no facebook, vendo todas fotos e check in feitos pela ex. De noite ligava para Roberta. Se Roberta não podia, ligava para Fernanda, ou então, Ana Paula, Marisa, etc… Para algumas ele reclamava da vida, entre outras criava situações e até sentimentos que não tinha tudo para ser valorizado, desejado, preencher um vazio imenso que sentia.
João acreditava que o mundo ou melhor todo mundo a sua volta lhe devia algo. Era na infância, adolescência, vida adulta… Crianças, pais, amigos, relacionamentos, chefes, políticos, sistema, sociedade, vida…

Todos um dia foram ou eram seus algozes.

João mal percebia que com o passar do tempo se tornava um feroz algoz capaz dos mais maldosos pensamentos, das mais frias atitudes, das mais cínicas palavras. João nem percebia que perdia algo que um dia já lhe foi muito caro: o caráter.
Ainda antes de deixar o restaurante o qual se recusava a pagar pelo almoço, foi ao banheiro e ao se olhar em um espelho bem iluminado observou que além de estar ficando careca, fios brancos surgiam e rugas que ele não tinha notado. De repente, ele não tinha mais 20 anos, não era mais o cara mais bonito da festa, estava se tornando o “tio da Sukita”, e ainda não tinha conquistado nem a metade do que desejava na vida. Sua vida parecia uma frustração constante.
Eis então que um menino de uns 9 anos entrou no banheiro e disse:
– Quanto tempo o senhor fica se olhando no espelho?
– Por que?
– Minha mãe diz que quem muito olha para si, não vê o outro. Mas o senhor está me vendo, né?
– Sim
– Mas por que lhe chamei atenção, não?
– Talvez…
Eis então que o menino pergunta:
– E você vê mais alguém aqui?
– Não!
– Como não? Esse banheiro está lotado!
– Não, só tem eu e você aqui.
– Ah não, mais um iludido que só vê o quer. Sinto muito pela sua situação.
O menino se despede e está saindo do banheiro, João então diz:
– E como eu faço para ver o que você vê?
– Você não tem coragem
– Tenho sim, já fui até campeão de box – brinca.
– É mesmo? E quem o senhor enfrentou?
– Vários lutadores..
– O senhor já enfrentou a si mesmo?
– Como?

– O senhor já enfrentou o seu próprio demônio?

– Como assim?
– Você nunca viu seu próprio demônio?
– Não…
– Então o senhor é sempre a vítima?
– Como assim?
– Nossa!! Em que mundo o senhor vive?
– Acho que no da realidade…
– Tem certeza?
Um homem adulto entra no banheiro.
– Vem Pierre! Sua mãe está lhe esperando!
O garoto sai e João fica intrigado com aquela conversa que não parecia nada infantil. Saí do banheiro e vê que Pierre é filho de uma amiga sua de escola a quem ele apelidara de “esquisita”. Ao cumprimentá-la, observa em sua mesa, um livro: Mis demônios de Edgar Morin.
– Você já leu João?
– Não
– É muito interessante
– Eu imagino. Conheci esse rapaz no banheiro, parece que ele entende bem de demônios.
– Que bom. Todos deveriam entender.
Já eram 23h quando a TV do quarto do João resolveu sair do ar. Eram 5 para meia-noite quando os sinos de uma capela tocaram. Já era 0h01 quando na sua janela pousa um dragão cuspindo fogo sobre sua coberta. O despertador começa a tocar sem parar. O dragão voa e desaparece. João não acreditava no que acabara de vivenciar. Levantou, tomou café e esperou até a hora de ir trabalhar. Ao ligar seu notebook no trabalho, uma frase:

– Vai acordar ou esperar o seu demônio lhe engolir?

Ele então digitou:
– Como acordo?
– Olhe em volta!
Logo o note começou a falhar, e fazer fumaça.
Foi chamado um técnico, que bem humorado perguntou:
– O que é para consertar a máquina ou o homem?

P.S: Aguardem cenas dos próximos capítulos

Pra refletir:

 

 

MELINA GUTERRES

Jornalista, proprietária da Sina Comunicação, criadora e editora do portal Rede Sina, roteirista associada a ABRA – Associação Brasileira de Autores Roteiristas, produtora cultural e poetisa. Mais sobre em: www.melinaguterres.com.br

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