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Inteligência Artificial (parte II) por Paulo Trindade

Continuando  a pensar sobre inteligência artificial, em 2020 houve vários progressos muito importantes nesta área. Os mais destacados foram a aplicação do programa “deep mind” na dobradura de proteína e o algoritmo de linguagem GPT-3.

A dobradura de proteínas é o processo pelo qual aminoácidos se transformam em proteínas. As proteínas são as unidades básicas de que se constroem os organismos vivos, e os aminoácidos são a matéria prima para se chegar nisto. Uma proteína é uma estrutura tridimensional complexa; um aminoácido é bem mais simples. Se sabe que a mesma combinação de aminoácidos e reações sempre chega à mesma proteína, tanto como dois mais dois é sempre quatro, mas calcular a proteína final a partir dos componentes é mais ou menos como olhar uma lista de supermercado e deduzir o que terá no jantar, só que sem saber absolutamente nada sobre como cozinhar.

Ano passado eu lidava com o seguinte problema no trabalho: tenho um componente que estou comprando de cinco fábricas diferentes e levando a duas fábricas que o utilizam. Os preços de cada fábrica eram diferentes, assim como o custo de frete de cada uma, e era necessário respeitar várias restrições de capacidades e quantidades mínimas e máximas que cada fábrica pode fazer.

Este era claramente um problema para uma inteligência artificial, não uma inteligência humana. A solução era computar todas as soluções possíveis e escolher a de custo mais baixo. Uma pessoa teria que trabalhar um mês em fazer estas contas, enquanto uma planilha de Excel chega ao resultado em meio segundo.Calcular uma dobradura de proteínas requer centenas de milhares de computadores, trabalhando vários meses, para se chegar a um cálculo 70% correto.  Aqui é onde entra a experiência do cozinheiro.

Se dermos uma lista de compras de ingredientes a uma pessoa que sabe cozinhar, ela vai intuir o que será a janta hoje ou, pelo menos, saber que se a lista tem “alface, tomate e cebola” , a resposta não é “torta de chocolate”. Esta intuição que vem da experiência sempre foi considerada o que separa a mente humana das máquinas. Até agora.

A diferença entre a dobradura de proteínas e o jantar de hoje é que temos um bom vocabulário para comida, mas o vocabulário dos aminoácidos e proteínas é completamente alienígena para nós, e a complexidade dele milhares de vezes maior do que qualquer língua humana. Volto sempre àquele exemplo que eu gosto muito, o do livro “Hitchhiker’s Guide to the Galaxy”: tentar explicar isto para uma pessoa é como tentar explicar para uma formiga que a empresa de dedetização vai vir na terça. Entra, então, o software Deep Mind, da Google./

Em meu artigo anterior mencionei este algoritmo que ganhou do campeão mundial Lee Sedol no jogo de Go. O filme desta história é surpreendentemente emocionante, porque a própria equipe do AlphaGo termina torcendo pelo jogador humano, e a empatia do ser humano transcende a ambição.  Está no YouTube.

Comecei estes textos falando de como em ciência e tecnologia, muitas vezes, a solução de um problema vem de outra área sem nenhuma relação. Foi o que aconteceu aqui. O mesmo programa que adquiriu intuição sobre o jogo de Go, adquiriu intuição sobe a dobradura de proteínas. O AlphaGo (agora chamado de AlphaFold, referindo-se  dobradura) resolve os cálculos de dobradura em meia hora e está mais  do que 90% correto na molécula final.  Isto vai evolucionar vários aspectos de pesquisa médica, e os resultados nas nossas vidas vão ser visíveis em alguns anos.

A OpenAL e o programa GPT-3

O outro salto neste ano que terminou, foi mais fundamental: o programa GPT-3 da empresa OpenAI.

A OpenAI é financiada pelo bilionário Elon Musk, o fundador da Tesla que fabrica carros elétricos, da Space X que fabrica foguetes para a NASA, e de várias outras empresas muito visionárias. Musk hoje é a segunda pessoa mais rica do mundo, com uma fortuna maior do que a de Bill Gates. (A maior fortuna do mundo é  a de Jeff Bezos, fundador da Amazon).

Ao contrário de outros empreendedores de tecnologia, Elon Musk não é somente cético sobre inteligência artificial, ele é diretamente alarmista. Musk crê que inventar uma inteligência artificial superior à nossa é, em suas próprias palavras, “invocar o diabo”. É trazer para nosso mundo uma entidade que vai destruir a humanidade. A OpenAI é sua tentativa de controlar este processo, na lógica de que melhor ele do que algum laboratório secreto sem ética. Sejam quais sejam suas motivações, sua empresa, em agosto último, anunciou seu programa de linguagem humana GPT-3.  Estas são algumas coisas que o GPT3 faz:

  •  Escrever um blog que atraiu muitos leitores que pensavam ser escrito por um estudante universitário.
  •  “Traduzir” um texto médico de linguagem acadêmica para a linguagem coloquial, de maneira que uma pessoa leiga possa entender tudo o que ele diz.
  • Analisar outro programa de computador e explicar em palavras o que o programa faz
  • Produzir um programa de computador, criar um site de internet ou um app para telefone baseado em instruções dadas em linguagem humana normal e exemplos, sem necessidade de muitos detalhes. “Cria um programa tipo o Instagram, onde os usuários possam se inscrever e compartilhar fotos”. Ele cria.
  •  Escrever uma história de ficção no mesmo estilo de um escritor famoso; escrever uma coluna interessante de ler para o jornal inglês “The Guardian” e surpreender o leitor.
  •  Redigir um trabalho escolar completo, de nível universitário, recebendo somente o tema.

Este último é uma razão pela qual tiraram este programa de circulação. Nenhum aluno precisaria fazer trabalho chato. A outra razão foi que a Microsoft comprou a licença deste programa e vai integrá-lo, de alguma maneira, ao Microsoft Office e Elon Musk vai ganhar mais dinheiro ainda, com um investimento que era basicamente filantropia.

Para mim tudo isto a um problema muito mais sério e que todos podemos influenciar de alguma maneira: o desastre total que são os currículos escolares, especialmente de matemática e ciências.

As escolas não ensinam a pensar

Eu nunca fiz segredo de que durante quase toda minha formação, tive ódio profundo da escola e somente desfrutei dela ao fazer mestrado nos Estados Unidos quando, pelo menos, nos tratavam como criaturas pensantes e os assuntos eram mais interessantes.

Tendo um filho em idade escolar, vejo que a metodologia de ensino melhorou muito. Ao menos na escola dele que é privada e cara, mas a arbitrariedade do currículo continua igual. São centenas de horas dedicadas a decorar nomes de coisas de biologia  que nunca mais vamos lembrar, e aprender procedimentos mecânicos de matemática, física ou química, sem entender o que se está fazendo.

Tudo isto desperdiça tempo e investimento que deveria ser aproveitado em coisas muito mais importantes. Em vez de decorar categorias em biologia, deveriam ensinar sobre como se podem caracterizar as coisas, de organismos a brinquedos a pessoas, e a pensar sobre as vantagens e limitações dos métodos de  categorização.

A matemática é pior ainda. Eu sempre achei álgebra um exercício fútil e autoindulgente, uma elucubração intelectual baseada em atingir o resultado com um mínimo  de computação, numa época em que já existiam os computadores para fazer a parte chata.  O resultado final é um público que termina o segundo grau sabendo calcular o resultado de uma equação de segundo grau, mas sem ter a menor ideia do que está fazendo, e que não entende o real significado de quando alguém diz “na média”.

Visto assim, não é surpresa que políticos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro consigam convencer tanta gente de mentiras, porque as escolas não ensinam as coisas mais básicas de como pensar, sem falar nas habilidades humanas que são realmente importante, como negociar, controlar suas próprias emoções, administrar conflitos, gerar consenso, liderar. Tudo isto se ensina e se aprende. É só fazer o esforço.

O gênio matemático e criador de software Steven Wolfram escreveu muito sobre o problema dos currículos escolares de matemática, e resume o problema: até hoje se ensina matemática como se vivêssemos em um mundo onde os computadores não existem.

Trazendo isto de volta para inteligência artificial, cabe pensar que as ciências humanas nas universidades dos Estados Unidos se chamam “liberal arts” , e isto não tem nada que ver com política partidária. Vem do latim, significando “artes das pessoas livres” e eram as disciplinas que não se podiam ensinar aos escravos. Os escravos poderiam aprender capacidades técnicas, rotinas, procedimentos,  como os da escola, mas não poderiam aprender a pensar como gente livre, a criticar, a concluir, persuadir, a ter ideias próprias. Isto ameaçava a estrutura de poder.

O medo de Elon Musk é exatamente o mesmo dos romanos. Estamos por entrar em uma época em que cada vez mais o conhecimento técnico vai ser automatizado, e os computadores vão funcionar para nosso cérebro da mesma maneira que os automóveis para nossas pernas. Vão nos permitir ir muito mais longe, com menos esforço.

Eu não sei se algum dia os computadores se revoltarão e abrirão as portas de Roma para os bárbaros (ou talvez as portas dos nossos sistemas imunológicos para um vírus). Isto soa a antropomorfismo, a projetar qualidades humanas em outras coisas, mas nem eu, nem ninguém sabe.  O fato é que se  existem razões para preocupação. Vamos estar em uma posição melhor, com uma sociedade educada a pensar em vez de somente aplicar rotinas. Se todos formos máquinas de repetição que as escolas tratam de formar aí, talvez, mereçamos e precisemos de uma raça de computadores que saiba pensar de verdade.

 

Paulo Trindade é Gerente Geral da Sure Good Foods USA, e vive em Atlanta nos Estados Unidos. Formado em Administração pela UFSM, é mestre em Administração pela Emory University e tem exercido funções de liderança em empresas de alimentos e Comércio Exterior em vários países, e vivido na Argentina, Ásia, e México.

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