Algo curioso e instigante é que já estive em 31 edições neste festival, entre as 51 já realizadas, evento que se tornou a principal referência para o cinema brasileiro. Algumas vezes ficando ali em Gramado uns poucos dias, assistindo parte da programação ou indo a algum encontro de cinema e, porque não, às festas. Mas na maior parte das vezes ficando a semana inteira ou mais dias, dependendo de sua duração.
A primeira delas foi em 1989, ano marcado pelo emblemático e impactante curta-metragem “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado. Agora, 34 anos depois, Jorge, um dos nomes mais relevantes do RS por detrás das câmeras, aparece na tela do festival como personagem em um longa documental sobre Luis Fernando Veríssimo. Ou melhor, buscando o rigor do vocábulo, como participante depoente. Mas isso é só um gancho para começar esse artigo, meu primeiro, aliás, sobre o Festival de Gramado.
Entretanto, não se trata de minha primeira elaboração sobre o festival, considerando que em 1995 realizei um programa especial de TV inteiro sobre sua 23ª edição. Fazia minha pós-graduação em Producción Audiovisual na tradicional Universidad Complutense de Madrid e, ao mesmo tempo, em julho daquele ano, estagiava no Departamento de Televisão da Agencia EFE, em Madri. Ali, pude fazer contato com uma das emissoras públicas transcontinentais que operava em colaboração com a agência, a TEI – Televisión Educativa Iberoamericana. Consegui convencer a direção da emissora, sediada em Madri e viajando por meus próprios meios, a vir como representante de imprensa credenciado para cobrir o festival e, a partir do evento, produzir um programa de 45 minutos, que se intitulou “Iberoamérica a 24 Fotogramas”.
O festival, após a profunda crise do cinema brasileiro, iniciada com a extinção da Embrafilme em março de 1990, e da quase absoluta ausência de fomento público, estava em sua 4ª edição depois de se converter, no ano de 1992, em Festival de Cinema Ibero-americano de Gramado. Naquela edição, 19 anos depois de sua fundação como “Festival do Cinema Brasileiro”, pela primeira vez premiava filmes, profissionais e elencos estrangeiros, marcada pela forte presença mexicana como o filme de Jorge Fons, “Callejon de los Milagros”, obra que praticamente lançou Salma Hayek, cuja carreira decolou após este filme, indo rapidamente parar em Hollywood, começando pelo filme de Robert Rodriguez, A Balada do Pistoleiro. Pois bem, meu programa especial para a TEI, contou com entrevistas, trechos de trailers dos filmes concorrentes e com a apresentação de Carolina Calderón, minha colega colombiana no pós-graduação da Complutense, ela que tinha o tipo e o pendor para ser apresentadora de TV, tudo gravado em Betacam no estúdio de TV da Agencia EFE.
Junto estes dois fragmentos do tempo porque de alguma maneira, em minha disposição de fazer livres analogias, esses momentos se encontraram em meu universo subjetivo nesta 51ª edição do Festival. Primeiro porque me faz recordar nitidamente o cenário onde pisei pela primeira vez o espaço festivaleiro, em agosto de 1989, vindo como credenciado pela Prefeitura de Porto Alegre, onde havia começado a trabalhar, 7 meses antes, como Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia na gestão do saudoso Luis Pilla Vares, à frente da Secretaria Municipal de Cultura da capital gaúcha. O cenário era de um cinema brasileiro em ladeira descendente no mercado, com o modelo de produção da Embrafilme dando sinais de esgotamento e, naquele momento, com a maior parte dos grupos exibidores de cinema no Brasil, havendo ganho na justiça o direito de não atender à obrigação de cumprimento da cota de tela para o cinema brasileiro. Em suma, conseguir espaços de exibição em salas era difícil ou quase impossível, muito semelhante, por outra razão, mas que não deixa de ser similar aos dias de hoje. Neste momento, não se trata de ações na justiça pelos exibidores reivindicando o direito de não se obrigarem a ocupar suas telas em um percentual de dias do ano com obras brasileiras, como estava estabelecido legalmente naquela época, cujo cumprimento era fiscalizado pela Embrafilme. No corrente ano de 2023, se trata, isto sim, da ausência de cota de tela, após 4 anos de um governo federal que quase asfixiou o cinema e audiovisual brasileiros, tendo como uma de suas anti-metas não dar continuidade às ações políticas vitais existentes até o começo do desgoverno, a exemplo do cumprimento de cota de tela para o cinema brasileiro.
Entramos na edição do festival deste ano, com uma participação de nosso cinema no mercado – conhecida como market share – de menos de 1% das bilheterias no todo do primeiro semestre. Podendo chegar, quem sabe, com uma boa dose de otimismo e confiando nas produções a serem lançadas no segundo semestre, a cerca de 4% do mercado. Número que seria levemente superior ao que alcançamos entre 1992 e 1995, época que podemos chamar de o fundo do poço.
Nesse sentido, o que trouxe de novo o festival e que possa nos dar algum respiro? Talvez a principal novidade seja a (quase) quebra de paradigma, tendo uma comédia, aliás potente, como grande vencedora: Mussum, o Filmis, dirigido pelo ator, produtor, diretor e dramaturgo Silvio Guindane.
Não que seja a primeira vez que uma comédia é premiada, cabendo aqui lembrar o filme de Mauro Farias que, seguindo os passos de seu pai, Roberto Farias, também ganhou o prêmio de melhor filme em Gramado, justamente em 1991, último ano como Festival do Cinema Brasileiro. Uma comédia suburbana estrelada por Evandro Mesquita, Não Quero Falar Sobre Isso Agora. Evandro que depois irá nos brindar com sua veia cômica – que já aparecia nas performances da Banda Blitz – com o incorrigível e hilariante personagem do mecânico Paulão, em A Grande Família.
Ganhar a estatueta de melhor filme, desconstruindo preconceitos, estereótipos e resgatando a riqueza do personagem de Mussum, através de uma dramédia afiada, não só nos permite sair do lugar-comum de que comédia não dialoga com o cinema de autor ou “de arte”, conforme reza o jargão, como lança esperanças de que possamos ganhar novamente o coração das plateias de preferência que seja em breve. Segundo dados do OCA – Observatório do Cinema e Audiovisual, ligado a ANCINE, a comédia é o gênero mais popular no cinema brasileiro, havendo conquistado 12 entre as 20 maiores bilheterias na história do cinema brasileiro. Mussum o Filmis, é uma obra que transita com leveza e a densidade necessária nos momentos dramáticos, sendo capaz de contentar até críticos empedernidos e que rejeitam o valor artístico do gênero. Mesmo estudiosos acadêmicos que se debruçaram sobre A Poética, de Aristóteles, consideram que suas citações à comédia em nada a diminuem em relação à tragédia, antes o contrário, tendo em vista a capacidade da comédia em universalizar dramas humanos. Segundo Pierre Destrée, por exemplo, em seu ensaio A Comédia na Poética de Aristóteles, “duas passagens importantes mostram muito claramente que Aristóteles considerava que a comédia tem tanto valor quanto a tragédia” (Organon, Porto Alegre, nº 49, julho-dezembro, 2010, p.69 – 94).
É o que vemos com maestria no filme sobre Mussum, capaz de provocar nosso riso espontaneamente, sem deixar de levar-nos à reflexão sobre as ambivalências da fama e do êxito na TV, com o êxtase e a dor que carrega. Também pincela brevemente, em seu recorte histórico, sobre como esse meio foi capaz de absorver e manejar as mazelas da sociedade brasileira, sendo o humor uma de suas principais ferramentas na aderência do público espectador.
Considero um resultado muito feliz o júri ter se despido de eventuais preconceitos e superado alguns narizes torcidos pelo filme ter estado no seleto grupo de apenas 6 filmes em competição, dentre as centenas de longas-metragens que se inscreveram. Agora é esperar para ver, mas, nesse meio tempo, é claro, teremos que lidar com a luta pela aprovação da volta da cota tela ao cinema nacional. Pois assim como outras obras neste segundo semestre, que podem contribuir para reconquistar o público para nossa cinematografia, Mussum também precisará ter um tempo em cartaz, para que o boca à boca possa criar um caudal longo de espectadores.
Por fim, a outra grande novidade do Festival de Gramado deste ano, além do já mencionado acima, que foi o fim, depois de 30 anos, da mostra competitiva estrangeira, ou melhor, ibero-latino-americana, é o fato desta ter sido substituída por uma mostra competitiva de documentários, ficando esta inclusive com o horário nobre de exibição, depois da 9 da noite. A mostra já havia acontecido no ano passado pela primeira vez, mas ainda como uma espécie de “patinho feio” do evento e apenas transmitida pelo Canal Brasil, sem direito a plateia presencial. Neste ano não só ganhou grande relevância, como trouxe à tela do Palácio dos Festivais, 5 longas-metragens com grande diversidade de temáticas, abordagens e linguagens, todos com significativo valor artístico e criativo. Destes, dois filmes são notáveis cinebiografias, um deles, Luis Fernando Veríssimo, o Filme, dirigido pela gaúcha Luzimar Stricher, consegue a proeza de revelar não só a admirável e singular trajetória do escritor, como, de maneira sensível, sua recatada vida pessoal, marcada pela timidez e pelo mais refinado senso de espírito, que o posicionou, durante anos, como um dos escritores mais lidos no Brasil. Além de sua significativa trajetória como criativo e roteirista na TV Globo. Também o filme Roberto Farias – Memórias de um cineasta, dirigido por sua filha, Marise Farias, não só traz à luz a imensamente relevante trajetória deste cineasta, um dos primeiros brasileiros a competir em Cannes, como desvela o turbulento período em que esteve à frente da Embrafilme, deixando momentaneamente de lado sua carreira, em plena ditadura. Filme imperdível para quem desejar conhecer melhor a atmosfera que permitiu que o cinema nacional mobilizasse grandes plateias no que já se convencionou chamar de “Era Embrafilme”, que durou 21 anos.
Mas além desses dois filmes, de narrativa clássica e linear, outros 3 filmes retratam um país em eterno conflito consigo mesmo. País cheio de aforismos que tentam nos ditar condutas e traçar linhas entre certo e errado, em geral apoiados em uma moralidade conveniente de ocasião, sem uma alteridade e substância. Temos aqui o drama e a resiliência dos motoboys de Brasília durante a pandemia, no filme Da Porta Pra Fora, que além de retratar o universo e dilemas pessoais de 3 motoboys e uma motogirl, desmascara a hiper exploração e a escandalosa falta de legislação protetiva a essa profissão, que foi vital durante a pandemia. Na outra ponta do hemisfério social, foi possível apreciar o contundente documentário do cearense Wolney Machado, Memórias da Chuva, relato pungente que acompanha durante anos o doloroso drama da população do pequeno município de Jaguaribara, no Ceará profundo, que se vê obrigada a aceitar a inundação de sua cidade para a construção da polêmica, desnecessária e ineficiente Barragem do Castanhão. O filme consegue, sem ceder à tentação do viés panfletário, desvelar a matriz da tradicional política daquele estado, onde desfilam “coronéis” como Paes de Andrade e Tasso Jereissati, que não pouparam esforços e manipulações, na mídia e no universo da política local, para literalmente afundarem esse pequeno município, onde para quase todos significava destruir os laços de várias gerações. É um filme com legado de memória precioso e exemplar sobre capacidade de abandono do Estado brasileiro quando lhe cabe considerar populações em estado de vulnerabilidade.
Por fim, o quinto documentário e grande vencedor como melhor filme documentário, Anhagabaú, produção paulista bastante outsider e dirigida por um gaúcho, Lufe Bollini, traça um inusitado paralelo entre a comunidade Guarani Mbya, do Jaraguá, distante bairro de São Paulo e população nômade do centro da Paulicéia. Aqui em ação os “ocupas” de um tradicional edifício na Rua do Ouvidor e o exercício artístico de seus moradores, assim como sua relação próxima com o Teatro Oficina Uzyna Uzona e Zé Celso Martinez, que tem breves aparições registradas. Enquanto os Guarani resistem e lutam, tentando garantir seu direito ancestral, por quinhão daquelas terras, na borda dos resquícios de Mata Atlântica no Parque Estadual do Jaraguá, os ocupas do Ouvidor buscam retomar um espaço urbano abandonado e sem função social. É do cruzamento dessas duas lutas que o filme, um pouco desordenado e anárquico em seu começo, cresce e termina de maneira potente, como um retrato e reflexão indispensáveis na contemporaneidade brasileira.
A Maratona cinematográfica valeu cada minuto dentro da sala escura do tradicional Palácio dos Festivais, que nasceu como Cine Embaixador em 1967. Ofereceu aos participantes credenciados e convidados e ao público transitório, uma ampla mostra da riqueza criativa do cinema brasileiro, que ainda incluiu, além da cinebiografia de Mussum, mais 5 longas-metragens de ficção na competição nacional, os quais não abordei, pelo propósito desse artigo, assim como 5 longas-metragens gaúchos, com a vitória de Hamlet, do cineasta Zeca Brito; 12 curtas-metragens nacionais e 18 curtas-metragens gaúchos, desta vez espraiando a seleção para 8 municípios. E assim o festival, que contrasta a opulência do turismo e da atmosfera gramadense com o ambiente de diversidade, genuinamente cinematográfico do evento, segue sua jornada, se reafirmando a cada ano que passa, como uma das mais importantes referências e vitrine indispensável para o cinema brasileiro.
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Beto Rodrigues é graduado em História pela UFRGS e pós-graduado em Producción Audiovisual, pela Universidad Complutense de Madrid. É produtor, diretor e colaborador de roteiros, já com 26 longas-metragens em sua carreira e 8 séries de TV.