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Panificadora Freitag em Vista Alegre/RS. Foto: arquivo pessoal do autor.

Eu sempre soube que meus pais faziam poemas, por Felipe Freitag

Em homenagem à minha mãe Elenita Stival Freitag e ao meu pai Darci Freitag

 

“No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função do verbo, ele delira
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio”

(Manoel de Barros)

 

Este texto surgiu com a memória do farfalhar das folhas secas sendo pisoteadas por pombas cinzentas. Este texto nasceu por volta das seis horas da manhã, quando o céu se travestia de noite para alcançar uma nota musical qualquer desde que não fosse mais a da lua branca. Entretanto, este texto somente está sendo escrito à tarde, quase tardezinha, quando a modorra já deixou o corpo e costurar a vida em tecido verbal já brame minhas mãos trêmulas por sobre as linhas do papel.

Sinto falta. É sobre isso que escrevo.

Sinto falta de ser acordado para ir à escola…com o barulho daquelas máquinas, com o cheiro daqueles pães a estalar à saída do forno, com o ruído longínquo da voz do bispo diocesano vindo daquele rádio à pilhas já surrado do tempo (aquele mesmo comprado pelo meu pai em sua adolescência com o seu primeiro salário como padeiro). Sinto falta de escovar os dentes enquanto ouvia uns assovios bem compassados de meu pai (nunca soube a imitação de que músicas eram). Sinto falta de lavar o rosto enquanto sentia que minha mãe falava comigo com as mãos (e, hoje, dou-me conta de que eu falo muito com as mãos assim como ela). Sinto falta de alinhar meu cabelo qual moço de boa índole e temente a um Deus que me punia quase todos os dias. Sinto falta de esperar o relógio da padaria marcar 07:20 (Carine acordava antes de mim e Natiane acordava depois; íamos os três juntos ao colégio) para que eu me sentisse seguro e pudesse ir para a escola (minha mente marcara essa hora e desde então eu não podia desobedecer a esse comando; mais tarde isso teve um diagnóstico médico). Sinto falta de chegar, na escola, e alguns colegas vociferarem, sarcasticamente, que eu estava cheirando a pão (mal sabiam eles que isso não era ofensa; era uma benção).

Sinto falta. É sobre isso que escrevo.

Sinto falta de ver meu pai fazendo pães, cucas e afins e medindo todas as quantidades dos ingredientes por meio das mãos. Sinto falta de ver minha mãe, como uma pintora surrealista, cuidar de cada detalhe da fusão de cores e de sabores ao preparas tortas. Sinto falta dos movimentos de mãos e de braços que meus pais faziam ao trabalhar. Pareciam abraçar as massas como se fossem filhos seus a serem cuidados. E eram.

Meus pais, por certo, não viam o que eu via, mas as cores, os odores, os acordes, os movimentos corporais eram não apenas performances para sustentar a família. A farofa (açúcar, banha, canela) das cucas sendo cuidadosamente esmigalhada com as mãos eram poemas de Cora Coralina. O pão d’água sendo meticulosamente recoberto por uma fina camada de farinha de milho e acomodado em caixotes de madeira com panos eram poemas de Manoel de Barros.

Darci Freitag mostrando seu trabalho. Foto: arquivo pessoal do autor.

 

Eu sempre soube que meus pais faziam poemas e, anos mais tarde, na graduação, para além de teorias, eu SENTIA a poesia. E sim, isso fez toda a diferença, pois eu me sentia em casa diante da análise de um poema (mesmo errando em tantas e tantas análises). Dia desses, reencontrei minha professora de Literatura Portuguesa da graduação e conversando com ela:

_Profe! Acho que não fui um excelente aluno nas suas disciplinas. Até peguei exame em uma delas.

Então, ela disse algo como (o Zolpidem da tarde e a taça de vinho da noite fizeram-me esquecer as palavras exatas que ela utilizou):

_Você foi maravilhoso. Maravilhoso, justamente, porque SENTIA a poesia. Alunos muito engessados têm dificuldade para ver o que os textos literários escondem. Você não tinha essa dificuldade.

Mal sabia ela que aprendi isso com meus pais, afinal EU SEMPRE SOUBE QUE MEUS PAIS FAZIAM POEMAS.

 

FELIPE FREITAG é graduado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela UFSM e é mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Professor a mais de dez anos, dedica-se, também, à escrita literária. Atualmente, voltou a escrever com certas constância (o que tem sido maravilhoso para um sujeito com depressão que chegou a perder o sentido da vida…)

 

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