Por Maria Alice Bragança
Ouça o rugido da onça. É o alerta que fica após a leitura deste novo e fascinante romance de Micheliny Verunschk, o quinto da carreira da escritora, premiada em 2014 com o Prêmio São Paulo de Literatura, por “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida”, editado pela Patuá.
Publicado em 2021, pela Companhia da Letras, “O som do rugido da onça” conta (reconstrói) a história de duas crianças indígenas, Iñe-e e Juri, raptadas (traficadas), pelo botânico Carl Friedrich von Martius e o zoólogo Johann Baptist Spix, da Academia de Ciências da Baviera, na missão científico-cultural realizada pelos naturalistas entre os anos de 1818 e 1821.
A menina-onça do povo Miranha e o menino-peixe do povo Juri são levados até Munique para estudos e exibição na corte de Maximilian Joseph I, juntamente com outras crianças indígenas, que não resistem à longa e torturante viagem de navio. Entrelaçando narrativas, em um movimento entre o passado e o presente, o romance traz Josefa, que, dois séculos depois, encontra suas raízes ao visitar uma exposição em Munique sobre as duas crianças indígenas.
Logo nas primeiras linhas da narrativa, a historiadora, romancista e poeta Micheliny Verunschk dá o tom lírico e transcendental do romance, em que articula seus múltiplos talentos:
“… O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a viver.”
A menina-onça, Iñe-e, tinha seu idioma, além de ser poliglota nas línguas dos animais e dos rios. Ao chegar à gélida cidade de Munique, só consegue conversar com o rio Isar. Consumida pela tristeza, vai morrendo aos poucos.
O menino-peixe, Juri, esforça-se para se comunicar, mas é ilusão, morre antes de sua irmã. Tem o corpo “estudado”. Corpo e cabeça separados.
Na cidade, a menina escuta a voz do rio. Uma poética voz da natureza, uma voz da água, Isar fala a Iñe-e:
“O rei me vê como um traço verde rasgando a paisagem. Ou como um pedaço de pano retorcido. Sobre um papel pardo, um risco. Qualquer rei me vê assim, e nenhum percebe bem as dobras e as ondulações, nenhum sabe que sou profundo verde. Essencial e denso verde. […]
Eu em nada creio, sou um rio. Eu vou e volto, conheço o chão e o céu, compartilho a língua comum a todas as águas. Atravesso o tempo. Morro e renasço. Engulo e regurgito. Sei dos animais tristes que são os homens. […]
Tempestades são rios, você sabe. Toda água é, a linha azul que caminha nos mapas, o trajeto do sangue no corpo.”
Da história oficial, o nome das crianças desaparece.
Denunciando a violência simbólica acompanhada da violência física, o poder de vida e de morte sobre o outro, Verunschk registra que os reis, mesmo decapitados, mantêm seus nomes, mas ao menino Juri, filho e sucessor natural do líder de sua tribo, o nome foi negado.
A história negada de Iñe-e e Juri precisa ser contada na língua possível. Outras vozes precisam ser ouvidas, outros olhares sobre as histórias que se querem verdades. Escutar a Onça Grande, Tipai uu, é também ouvir a voz de Isar, sua voz de água.
Assim, a narradora – e aqui escolhemos que ela é a e não o, assim como os rios poderiam ser as rios, se a história da nomeação das coisas fosse outra – não esconde seu conflito com a própria linguagem que precisa emprestar:
“Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la.”
Ouvindo a sabedoria da floresta, a autora nos conta que todos os seres têm palavras: “Tem palavras que só as onças usam e que não é dado a nenhum outro animal dizê-las. Do mesmo modo toda a diversidade de reinos dos bichos e das plantas.”
Refletir sobre a trágica história do sequestro das crianças é também refletir sobre a palavra e seus limites. O som do rugido da onça denuncia as palavras, que podem usadas para trair, para falsificar uma biografia nobre, ocultando os atos vis. É isso que faz Martius e é contra isso que Verunschk escreve. Se Martius se insere no seu próprio discurso e no discurso histórico como o salvador daquelas crianças, o herói que as libertou de um cativeiro, aquele que as tirou do breu da barbárie para a luz da civilização, a autora o coloca no lugar que ele se esforça por esconder: o de um sequestrador de crianças.
E, em meio ao horror do que crê civilizado, a beleza da liberdade na natureza:
“Espiando tudo do alto, o mundo era mais bonito. Baleia peixe grande do mar, andando em bando, rasgando corpo da água e sereiando com bruta delicadeza. Os pássaros em seu voo de zagaia regressando com os peixes quase embainhados nos seus bicos. Iurukuás nadando em torno dos matinhos, seus cascos de pedra, elas feito ilhas animais.
Onça viu tudo isso e achou que era bonito e bom e prosseguiu fazendo novo caminho no céu, escolhendo dessa vez passar pelas montanhas grandes d’onde nasce aquele rio que fora amizade fina, do seu peito. Isar. O nome lhe trazia alento. Desceu a nascente, jogou fiozinho d’água das patas pra’s costas. As duas foram só relembranças.”
Beleza do sentir da natureza e do olhar das onças, como ela mesma, Onça Verunschk. Beleza que está em toda parte e nos anima a esperançar. Saber que há uma longa, árdua, luta contra essa fealdade e escuridão que ameaça o planeta, com ambições, mineração, capitalismo selvagem, mas que há a beleza e que ela pode vencer. Escute o rugido da onça.
Boa leitura!
Micheliny Verunschk (Onça Verunschk) nasceu em Recife em 1972 e cresceu em Arcoverde, sertão de Pernambuco, onde se graduou em história. É doutora em semiótica pela PUC-SP. Seu primeiro livro, uma obra de poesia, “Geografia íntima do deserto” (2003), em 2004, foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, hoje Prêmio Oceanos; o romance de estreia, “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida” (2014), ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura de 2015 (melhor romance de autor estreante acima de 40 anos).
Em poesia, é autora de: “Geografia íntima do deserto” (São Paulo: Landy, 2003); “O observador e o nada” (Recife: Bagaço, 2003); “A cartografia da noite” (São Paulo: Lumme, 2010); b de bruxa – bônus bonnificarum. (Recife: Mariposa Cartonera, 2014); “maravilhas banais” (Goiânia: martelo, 2017).
Romances: “Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida” (São Paulo: Patuá, 2014); “Aqui, no coração do inferno” (São Paulo: Patuá, 2016); “O peso do coração de um homem” (São Paulo: Patuá, 2017); “O amor, esse obstáculo” (São Paulo: Patuá, 2018).
MARIA ALICE BRAGANÇA
Nasceu em Porto Alegre, RS. Poeta e jornalista. Diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: “Quarto em quadro” e “Cartas que não escrevi”. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e participa do coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa). Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Germina e InComunidade (Portugal) e participou, neste ano, do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina).