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ESTANTE DA ALICE | “Eu sou macuxi e outras histórias”, de Julie Dorrico

por Maria Alice Bragança

Atualmente, conforme o Instituto Sociocultural, há no país pelo menos 255 povos indígenas, falantes de 150 línguas diferentes. Essa diversidade e riqueza ainda são praticamente desconhecidas da maioria dos brasileiros, assim como a violência e o genocídio perpetrado contra esses povos. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, fossem mais de mil povos, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. De acordo com o Censo IBGE 2010, haviam restado na época de realização do censo em torno de 897 mil, correspondendo aproximadamente a 0,47% da população total do país.

Conhecer a produção escrita de autores representantes dos povos originários do Brasil é uma das formas de reconhecer a importância desses povos e prestar tributo a seu legado e luta de resistência.

De acordo com Julie Dorrico, atualmente há 57 autores indígenas, que ela tem contribuído para divulgar em seu canal no YouTube, o Literatura Indígena Brasileira

A riqueza da produção literária de autoria indígena ainda tem tímido reconhecimento pela Academia Brasileira de Letras, para a qual concorre neste ano Daniel Munduruku, com o objetivo de dar visibilidade a essa importante diversidade linguística e de visões de mundo. Mestre e doutor em Educação pela USP, ele é autor de 57 livros, com mais de 5 milhões de cópias vendidas.

A leitura de “Eu sou macuxi e outras histórias”, de Julie Dorrico, publicado pela Caos & Letras em 2019, é um convite a esse reconhecimento e escuta de vozes que têm se ampliado através da literatura. O livro obteve o primeiro lugar no 16º concurso FNLIJ/UKA Tamoio 2019. O Prêmio Tamoio busca destacar novos escritores indígenas e é realizado desde 2004, sob direção de Daniel Munduruku, com apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

No prefácio do livro, intitulado “O caminho de volta”, Daniel Munduruku comenta que “o esquecimento não é uma possibilidade para quem se abre à circularidade e a deixa invadir, ainda que disfarçada de conhecimento acadêmico. É certo que saber é bom. Ele preenche. É certo também que o vazio é melhor. Ele nos dá possibilidades”. A autora, conforme Munduruku, “fez o caminho de esvaziar-se para ser preenchida pela memória e pelo pertencimento”.

Narradas em primeira pessoa, as dez histórias contadas neste livro transitam entre o verso e a prosa. Por vezes, Julie Dorrico faz uso de uma prosa poética que se apodera da oralidade para perpetuar no texto as reminiscências de sua ancestralidade. A autora nos leva para uma terra onde se pisa descalço, onde o ar que se respira é puro e se pode sentir a presença dos seres encantados.

O caminho de autoconhecimento e pertencimento, de que fala Daniel Munduruku, surge de modo enfático no conto de abertura, “Eu sou macuxi, filha de Makunaima”. Ao português, a autora juntou outras duas línguas (o inglêxi e o macuxês), pois para ela não há dúvidas: o seu mundo precisa ser criado dia após dia.

 

Eu sou macuxi, filha de Makunaima

 

Eu sou filha de Makunaima, que

criou minha avó:

 

primeiro de cera (mas ela derreteu!)

 

e depois de barro: resistindo ao sol e

passando a existir para sempre.

 

Um dia ela bebeu caxiri

e resolveu brincar

porque só assim podia

criar minha mãe

e ela criou!

Mas decidiu que a língua de minha mãe seria o inglês,

assim, minha mãe não se aborreceria e sua vida seria mais fácil.

A língua de minha mãe é diferente da de minha avó,

minha avó fala a língua de Makunaima.

 

Um dia minha mãe decidiu me criar mulher.

E criou, lá na década de 1990, bem certinho.

Decidiu, porém, que minha língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral,

nem o inglês dos britânicos,

mas o português.

Eu não quis não.

Então resolvi criar a minha própria.

Como não posso fugir do verbo que me formou,

juntei mais duas línguas para contar uma história:

O inglexi e o macuxês

porque é certo que meu mundo – o mundo – precisa ser criado todos os dias.

E é transformando minhas palavras que apresento minha voz nas páginas adiante.

 

Com muitas passagens poéticas, permeadas de memórias da infância, o livro traz também uma crítica à sociedade dos homens da mercadoria. Em “O homem do ouro”, Julie Dorrico aborda a ganância e a loucura pela riqueza que traz uma felicidade oca, esvaziamento de si mesmo e de todo o resto para aqueles que a possuem. Até não restar mais nada, a não ser a dor e a tristeza de mais uma perda para aqueles que ficam.

 

O homem do ouro

 

Quando a draga queen aportava no barracão, íamos buscar papai.

Ele sempre nos encontrava sorridente com uma pepita de ouro.

Aquele ouro que me deixava feliz porque mamãe e papai sorriam mostrando os dentes.

 

Durante nove anos,

eu tive o afeto de meu pai.

Mas ele enlouqueceu,

como todo homem do ouro

que não escapa da maldição

de matar os outros envenenados aos pouquinhos.

 

Enquanto meu pai ficava cada vez mais rico

Mais o rio-gente morria, bem devagarinho, sufocado pelo mercúrio.

E quanto mais morria,

Mais gentes-árvore, gentes-peixe, gentes-barranco, gentes-gente morriam com ele.

Até que um dia foi meu pai que morreu

primeiro, de tristeza;

depois, da vida mesmo.

 

Agora eu sei: a felicidade de meu pai não era boa.

Hoje eu sinto que toda felicidade que não é boa, depois mata.

Foi assim com o meu pai.

São as mesmas as histórias que eu escuto dos homens de ouro:

Se tornam outros, ocos, pouco.

 

Outros, oco, pouco.

Outros, muito ocos, pouco, e depois morrem.

Queria que não fosse verdade, mas é.

 

Com o sabor das pimentas que temperam as narrativas do livro e a identidade macuxi, fica aqui o convite a conhecer outros autores indígenas. Muitos deles são entrevistados por Julie Dorrico no canal do YouTube “Literatura Indígena Brasileira”.  Também está sendo exibida no canal do SESC Ipiranga, no YouTube, a websérie “Leia Autoras Indígenas”, uma iniciativa do coletivo @leiamulheresindigenas, perfil no Instagram que divulga obras e autoras, além de artistas visuais indígenas. Com o objetivo de difundir a literatura indígena de autoria feminina, o coletivo firmou parceria com o SESC Ipiranga para produzir dez episódios que trouxessem mulheres indígenas com suas artes e ofícios para serem conhecidas pelo público indígena e não-indígena. Iniciada em 2 de setembro, a websérie “Leia Autoras Indígenas” é produzida por Moara Tupinambá, Paolla Vilela, Julie Dorrico, indígenas Tupinambá, Puri e Macuxi, escritoras e pesquisadoras de literatura indígena. São 10 episódios, que estão sendo postados até 4 de novembro, sempre às quintas-feiras, às 19h. Protagonizado por uma autora/oradora indígena, cada episódio tem até 15 minutos, possuindo legenda e tradução em libras para maior acessibilidade.

 

* * *

 

Moradora de Porto Velho, em Rondônia, poeta, escritora, Julie Dorrico pertence ao povo macuxi. Ela nasceu nas terras da cachoeira pequena, mais conhecida como Guajará-Mirim. Mas foi às margens do Rio Madeira que cresceu ouvindo a mãe contar as memórias da família, dessas gentes que viviam lá quando acaba o Rio Amazonas. Um dia atravessaram esse rio gigante e foram conhecer os parentes em Boa Vista, em Bonfim (RR) e em Lethen (Guiana). Essa travessia, feita ainda na infância, foi, por meio da sua bisavó, o seu encontro com Makunaima e com o povo macuxi.

Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Julie Dorrico é uma das administradoras do perfil @leiamulheresindigenas do Instagram. Coordena o Grupo de Estudo em Memória e Teoria Indígena (Gemti) e é colunista da plataforma Ecoa, do UOL.

 

COLUNA: ESTANTE DA ALICE

Maria Alice Bragança nasceu em Porto Alegre, RS. Jornalista, diplomada pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais nos cursos na Universidade Feevale. Como pesquisadora da área de comunicação e do jornalismo, possui artigos publicados em revistas e anais de congressos nacionais e internacionais. Atualmente, é diretora de Comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Escreve poesia desde a adolescência, tendo publicado poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: Quarto em quadro, pela Shogun Arte, e Cartas que não escrevi, pela Casa Verde. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e é uma das fundadoras e organizadoras do coletivo feminista de escritoras Mulherio das Letras RS, participando também, além do grupo nacional do coletivo, do Mulherio das Letras Portugal e Mulherio das Letras Europa. Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Germina, InComunidade (Portugal), Literatura & Fechadura, Ser Mulher Arte e Mallarmargens.

 

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