O ano é 2020. Segunda semana de março. Porto Alegre. Sigo a passos lentos rumo ao Instituto de Psicologia da UFRGS para o primeiro dia de aula do doutorado no programa de Psicologia Social. Compro um café no caminho. As expectativas são altas, afinal, irei conhecer os meus futuros colegas com quem conviverei nos próximos quatro anos. Iremos compartilhar cafés, cervejas, risadas, frustrações, lágrimas e tantas outras coisas que envolvem uma pós-graduação. Pela primeira vez irei falar sobre a minha proposta de pesquisa em público. Como será que meus colegas reagirão ao escutar? Até o momento, tenho um pré-projeto com algumas poucas ideias: Nelson Rodrigues, escrita, ficção, censura, ideologia, teatro, casto-obsceno, política…
De repente me deparo com os portões fechados: não teremos aula porque há um vírus mortal voado pelo ar! Na época, como eu morava na Ramiro Barcelos (rua onde fica o Instituto de Psicologia), apenas dei meia-volta e fiz o mesmo caminho ao inverso. Mal sabia eu que esse seria o meu primeiro-último dia de doutorado presencial na UFRGS, que durou poucos minutos e aconteceu no portão de entrada. A segunda vez que pude estar na Universidade, de fato, foi na minha defesa de tese, em abril de 2024. Nesse lapso temporal de quatro anos, muitas coisas aconteceram, entre elas, a virada radical na minha pesquisa de doutorado (e na minha própria vida).
Minha graduação foi em psicologia, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Embora eu já tivesse passado pela graduação em história e pelas pesquisas em arqueologia, foi através dos livros de Freud e da minha análise pessoal que consegui derivar e seguir adiante. Depois de um tempo em Pelotas (RS) cursando um mestrado em Antropologia na UFPel, foi nos (des)caminhos do desejo que acabei parando na UFRGS, no programa de pós-graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura. Nessa época pude explorar a obra do cineasta soviético Andrei Tarkovski e, a partir dela, enlaçar algumas discussões sobre arte, política, utopia e psicanálise. Ao final do mestrado, o desejo de continuar pesquisando estava muito vivo. Embora ainda não tivesse uma questão bem definida (talvez esse momento nunca tenha chegado), sabia que carregava comigo uma constelação de interrogações que me convidavam a seguir pesquisando e abrindo caminhos nas veredas do tempo.
No entanto, o que pesquisar quando o que vemos são filas quilométricas de pessoas registrando certidões de óbito? De onde tirar forças para pensar e escrever quando a escuta clínica é tomada pelas vozes que tentam contornar a angústia das perdas irreparáveis causadas não apenas pelo vírus mortal, mas, sobretudo, pela negligência política e ideológica que invadia as nossas casas cotidianamente? Sem vacinas, sem esperanças, sem reticências: apenas a paralisia do inefável.
Nesse momento ecoava em minha memória uma das frases ditas no ato de posse do, então, presidente: o viés ideológico acabou. O cinismo dessa colocação, embalado pela própria ideologia pulsante que renegava vacinas e qualquer marca de diferença entre os sujeitos, começou a vir à tona. Ler e escrever teoria estavam tão insuportáveis quanto o farfalhar das vozes que enunciavam aqueles tempos sombrios. Foi assim que surgiram as crônicas: como dor e como palavra viva.
Escrever as [dores] crônicas de um tempo, foi a condição de possibilidade de poder relançar o meu desejo pela pesquisa e pelo percurso da academia. Crônica é dor enigmática. É a resposta que caduca em meio a uma medicina que a tudo responde com certezas. A dor crônica é aquela que insiste, persiste e leva os sujeitos ao insondável da interrogação. No entanto, crônica também é um estilo de escrita. Uma forma. Uma maneira de se enunciar as banalidades cotidianas que, por carregarem esse estigma – de banal – são deixadas de lado. Neste caso as crônicas são uma das tantas maneiras de explorar os infindáveis universos cotidianos que compõem o que conhecemos por realidade. Das crônicas, um estil[o]ete que pode cortar o tempo e permitir a construção de caminhos à deriva.
Como falar sobre ideologia sem cair em uma metafísica dos conceitos? Como transitar pelas [dores] crônicas [ideológicas] de nosso tempo sem prostrar-se pelas águas da desesperança que arrebentam as contenções ao nosso redor e invadem as nossas casas? Escrever crônicas foi uma das maneiras que encontrei de poder jogar com os significantes em sua radicalidade. Crônica como incerteza, como a possibilidade de tocar o angustiante do vazio sem deixar ele tomar conta da minha própria vida. Ao começar a escrever as crônicas da tese, consegui retomar as leituras teóricas que fariam parte dos ensaios desse trabalho. A ideologia não pode ser tomada como uma abstração: ela é a força material que constrói e destrói o mundo das coisas.
A matéria, em suas diferentes formas e apresentações, pode ser experenciada no ato de escrita e leitura do que pulsa nas capas de jornais, páginas de noticias e, é claro, nas pontas das línguas que enunciam alguma coisa sobre o que não se sabe bem. Aqui a escrita possui uma função: nas apenas a de descrever o que nos rodeia, mas a de transmitir o que não conseguimos palpar em sua totalidade. Os não-escritos que a escrita aporta. A ideologia em suas metamorfoses e variações. Neste caso, as crônicas como pergaminhos que aportam uma verdade, não-toda, sobre o todo que nos rodeia e constitui as nossas ilusões.
Não ao acaso este livro de crônicas tenha saído antes mesmo da parte teórica da tese. Uma posição sinto-mal que confesso nas inúmeras linhas que escrevo a partir disso que me faz questão. Para o filósofo Louis Althusser, uma leitura sintomal seria aquela que permite uma análise das contradições e dos pontos de silêncio de um texto para compreender a sua estrutura subjacente e suas implicações ideológicas. Ler e escrever para poder transitar pelas lacunas e inconsistências da realidade, as quais só são possíveis de conhecer através das colisões ideológicas no ato de escrita. Não há neutralidade: entre o manifesto e o latente se produzem os paradoxos de nossa condição de sujeitos e, portanto, as arestas para que possamos construir outras realidades (im)possíveis.
O livro As [dores] crônicas ideológicas é um sintoma de nosso tempo. Uma âncora que me permitiu seguir pesquisando e transmitindo alguma coisa sobre o que não se sabe bem porque se sabe muito. Considero um ato e, portanto, uma ética do que é possível transmitir nas andanças pelas [dores] crônicas ideológicas de nosso tempo. O livro está para pré-venda através do site da Editora Minimalismos[1] e, assim que terminar esse período, irei fazer alguns lançamentos em Porto Alegre, Santa Maria e Paranapiacaba (em SP). As datas serão divulgadas em breve no meu perfil pessoal de Facebook e nas redes sociais da Editora. Enquanto isso, convido a quem lê este release a tentar escrever as suas próprias [dores] crônicas sobre o intempestivo destes tempos.
Maria Lucia Macari é psicanalista e escritora. Nascida em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul. Sempre transitou pelas fronteiras do pampa e da linguagem. Graduada em Psicologia (UFSM), mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS) e doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), com período de mobilidade no programa de pós-graduação em Estudios Psicosociales, na Universidade Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, em Morélia, no México. É diretora e membro do comitê editorial da revista internacional Materialismos. Cuadernos de Marxismo y Psicoanálisis.