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Escravidão contemporânea, por Vitor Biasoli

Na década de 1980, eu lecionava numa escola estadual de Canoas e utilizava um poema de Ferreira Gullar para abordar as relações de trabalho no Brasil. O poeta escrevia a respeito do branco açúcar que adoçava o seu café, em Ipanema, e dizia que ele vinha de engenhos de Pernambuco ou Rio de Janeiro, de lugares onde não havia escola nem hospitais, e era produzido por homens de vida amarga que não sabiam ler nem escrever e morriam cedo. (O poema se chamava “Açúcar” e constava do livro Dentro da noite veloz, publicado pela Civilização Brasileira, em 1975.)

A partir daí eu desenvolvia uma longa conversa a respeito das condições de trabalho no campo e na cidade e da necessidade de lutar por melhorias, a começar pela aplicação da legislação trabalhista. Muitos desses alunos eram filhos de gente do campo (do interior de Dom Pedrito, Cachoeira e Caçapava, p.ex.) recém-chegados ao mundo urbano e as irregularidades do mundo do trabalho não lhes era estranhas. Outros já se experimentavam em empregos variados na região metropolitana de Porto Alegre e faziam relatos de situações questionáveis do ponto de vista trabalhista. Um quadro social que, na minha cabeça, seria superado pela necessidade de modernização do capitalismo. Vivíamos no período do Governo Figueiredo, da abertura política, e as transformações socioeconômicas pareciam urgentes, mesmo que se pensasse a manutenção e reprodução do sistema capitalista.

Doce ilusão, a de muitos de nós (uma ilusão, no entanto, que foi bonita de compartilhar). Com o passar dos anos ocorreram transformações profundas quanto à legislação trabalhista, o trabalho foi precarizado e o quadro piorou muito em alguns setores. Quando, no início do ano passado, 207 trabalhadores foram encontrados em situação “análoga à escravidão” nas atividades temporárias da vindima (colheita e transporte de uvas) das vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, em Bento Gonçalves, revivi as antigas ilusões dos anos 80… Não, o capitalismo moderno não tem necessidade de se modernizar quanto à regulamentação das relações de trabalho. Pelo contrário, as empresas modernas (como são as vinícolas gaúchas) convivem muito bem com relações de trabalho arcaicas.

Um episódio chocante para muitos de nós que o advogado e vereador petista Adeli Sell abordou com muita contundência num pequeno livro, A escravidão moderna: o caso da Serra Gaúcha (Porto Alegre, Editora Documenta, 2023). Textos de “militância cidadã”, diz o autor, escritos nas redes sociais e publicados em livro com o propósito de garantir sua permanência e alcance político.

 

 

Entre as perplexidades apontadas pelo autor está o fato da cidade de Bento Gonçalves ser originária da imigração italiana, isto é, de “rudes trabalhadores braçais” semelhantes aos trabalhadores nordestinos (baianos, na sua maioria) que foram contratados ilegalmente. Um dado contraditório, ao menos para muitos de nós, pois revela um rompimento desse empresariado com seus avós e bisavós, isto é, com a matriz camponesa que os constituiu.

O autor, descendente de imigrantes (pomeranos, no caso), escreve indignado com o empresariado da Serra Gaúcha. Afinal eles são descendentes de imigrantes italianos que tiveram diversas benesses governamentais, como o acesso à terra (a partir da instalação das colônias, em 1875), o apoio à produção do vinho (via criação de Estações de Enologia, EMBRAPA, Institutos Federais) e deveriam se lembrar disso.

Para o autor, as queixas do empresariado da produção de vinho quanto aos entraves estatais são uma “mentira grosseira”. A Reforma Trabalhista de 2017 flexibilizou as relações de trabalho, ampliou a terceirização (atendendo a uma demanda dos empresários, em especial quanto ao trabalho temporário), e estabeleceu normas para esses casos. Normas nada difíceis de serem implementadas. Bastava uma política de compliance, isto é, um programa de conformidade das empresas com a leis vigentes, para que essa situação escandalosa não ocorresse. No entanto, não foi este o caminho escolhido pelos empresários.

O livro funciona como uma denúncia e serve também para recordar para alguns de nós as ilusões em relação ao “moderno” capitalismo brasileiro. Sim, o moderno empresariado convive muito bem com relações de superexploração do trabalho.

 

 

 

VITOR BIASOLI. Nasceu em Pelotas (1955) e vive em Santa Maria desde 1991. Formou-se em História (UFRGS, 1977), fez mestrado em Letras (PUCRS, 1993) e doutorado em História Social (USP, 2005). Lecionou em escolas do Ensino Fundamental e Médio (1978-1991) até ingressar na Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente está aposentado. Publicou livros acadêmicos e literários, entre eles: Jorge encontra Lilian (novela juvenil, 1998), Calibre 22 (poemas, 1999), Uísque sem gelo (contos, 2007), Santa Maria: ontem & hoje (crônicas, 2010), O fundo escuro da hora (contos, 2018), Paisagem marinha (poemas, 2021) e Itália, trilhos e café: histórias da família Biasoli (crônicas, 2022). Pertence ao grupo de escritores da “Turma do Café” e é colunista da Rede Sina.

 

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