por Melina Guterres da Rede Sina
Minha sina é observar a vida em busca de histórias inspiradoras, sabendo que para levá-las até o público provavelmente vou passar anos quebrando a cabeça, dormindo mal, lutando contra o orçamento baixo e por melhores condições de trabalho, tendo insônia, ansiedade e problemas de saúde e ao mesmo tempo, me sentindo extremamente gratificado por isso.
Ele passou para o cinema histórias de vida.. Entre elas as de Cássia Eller, Jango e Arnaldo Baptista. Paulo Fontenelle é apaixonado por música e cinema, se obriga a assistir 365 filmes todo ano, o documentarista formado em cinema e jornalismo é nosso entrevistado de hoje. Ele estreou seu primeiro longa-metragem já sendo aplaudido por mais de 10 min no Festival de Cinema de Rio por Loki – Arnaldo Baptista onde conta a história de vida do ex-Mutante.
Sensível e impactante, tem um “ritmo” que “incomoda”, questiona e nos faz revirar na cadeira do cinema. Não foi diferente com Dossiê Jango onde se investiga a morte do ex-presidente. Fontenelle nos conduz em sua narrativa, nos leva até seus personagens à modo que nos sentimos como se fossem um amigo próximo. Ele provoca a intimidade e nos transforma com eles. Nesta entrevista conta “Quando termino um projeto, sou uma pessoas totalmente diferente de quando comecei.”. Isso é passado na tela.
Seu último documentário, sobre vida da Cássia Eller, também um sucesso no Festival de Cinema do Rio, trás diversos depoimentos para revelar a cantora e ainda critica o tratamento da imprensa sobre seu falecimento, que morreu em decorrência de um infarto e não de overdose como foi dito na época.
Fontenelle que se diz viciado em música e um “músico frustrado”, sobre seus personagens diz “Acho que tanto a Cassia, quanto o Arnaldo se assemelham muito no amor que ambos tem pela arte. São duas pessoas que colocaram a musica como objetivo central de sua vida, sem se preocupar em seguir rótulos ou modas passageiras. Ambos vieram a sua maneira e pagaram um preço por isso. Mas, ao mesmo tempo, deixaram além de sua obra, um importante legado de amor e de liberdade.
Se ainda não viu um filme do Fontenelle, prepare a pipoca, o lenço e algo pra apertar nos momentos de dúvida e raiva. É possível que sinta diversas emoções bem humanas como seus personagens.
REDE SINA – Como nasceu o seu interesse por documentários?
PAULO FONTENELLE – Acho que começou com minha paixão pelos Beatles. Quando eu era adolescente, numa época pré-youtube, eu gastava todo meu dinheiro em discos piratas e VHSs com musicas e imagens raras do grupo. Acho que esse trabalho arqueológico de pesquisa foi o início da minha paixão por documentos e imagens de arquivo. Os documentários Imagine e Beatles Anthology consolidaram essa paixão pelo formato. Mesmo assim, eu não planejei trabalhar com isso e quando eu entrei na faculdade de cinema, meu objetivo era fazer ficção. E foi pensando nisso que eu me juntei ao meu amigo Leonardo Cunha Lima para planejar um curta metragem. Como estávamos sem dinheiro dinheiro nenhum, vimos que a maneira mais barata de fazer um filme seria optando pelo documentário, uma vez que não precisaríamos de uma grande produção. Mas como nosso objetivo principal era fazer ficção, concordamos em fazer um documentário, mas que tivesse uma historia muito absurda para ser realidade. Foi aí que decidimos fazer o curta “Mauro Shampoo – Jogador, Cabeleireiro e Homem”, que conta a história do camisa dez do IBIS SPORT CLUB que em 15 anos de carreira fez apenas um gol e ajudou o seu time a entrar no Guiness Book como “o pior time de todos os tempos”. O filme acabou ganhando o Festival do Rio e mais de vinte prêmios através do mundo. Me apaixonei pela experiência e, logo depois , eu já estava filmando o LOKI.
REDE SINA – Qual a sua relação com música? Ela vai além do cinema?
Eu sou viciado em música. Às vezes acho que resolvi me dedicar ao cinema por ser um músico frustrado. Onde quer que eu esteja, estou sempre ouvindo musica e buscando conhecer artistas novos. Acho que isso influência de alguma forma, meu trabalho no cinema. A trilha sonora e o ritmo é sempre uma grande preocupação nos filmes que eu faço.
REDE SINA – Dois personagens dos seus filmes são músicos… Arnaldo e Cássia. É possível compará-los? O que vê de mais “mágico” em cada um deles?
Acho que tanto a Cassia, quanto o Arnaldo se assemelham muito no amor que ambos tem pela arte. São duas pessoas que colocaram a musica como objetivo central de sua vida, sem se preocupar em seguir rótulos ou modas passageiras. Ambos vieram a sua maneira e pagaram um preço por isso. Mas, ao mesmo tempo, deixaram além de sua obra, um importante legado de amor e de liberdade.
REDE SINA – Como é construir uma narrativa biográfica para você? É difícil selecionar os fatos?
É sempre um grande desafio encontrar uma forma de resumir a vida de uma pessoa em duas horas de projeção. O importante é sempre tentar encontrar os pontos chaves de transformação da vida dessas pessoas e mais do que isso, achar uma maneira de tocar em outros assuntos que vão alem da biografia e gerem discussão depois que o filme acaba. Acho que pra isso, o mais importante é sempre tentar fazer com que o espectador veja o mundo através dos olhos do personagem retratado.
REDE SINA – Com Jango você questiona um possível assassinato. Como foi pra você trabalhar esse drama?
O projeto começou quando o Roberto Farias me chamou para acompanhá-lo para fazer uma série de entrevistas como pesquisa para um filme de ficção que ele queria fazer sobre o Jango. Essas entrevistas acabaram chegando ate um ex-agente da polícia secreta Uruguaia que se encontrava preso em Porto Alegre e que dizia que tinha participado das conspiração que levou ao assassinato do nosso ex-presidente. Ficamos 4 dias dentro do presídio com ele dando mais de 10 horas de entrevistas e contando várias histórias recheadas de detalhes. A partir daí, vimos que tínhamos uma história muito maior por trás e decidimos que eu faria um documentário sobre o possível assassinato de nosso presidente enquanto o Roberto Farias se dedicaria ao seu filme de ficção. A partir dai começamos uma verdadeira investigação policial sobre esse assunto que sempre foi visto quase como uma lenda urbana e que nunca foi tratado com a devida seriedade. Uma entrevista ligava a outra. Se alguém em Porto Alegre dizia que tinha um conhecido no Uruguai que poderia ter mais uma pista desse quebra cabeça, íamos para la. Se essa pessoa dizia que conhecia alguém na argentina que possuía determinados documentos, íamos procurar essa pessoa em Buenos Aires. No final conseguimos reunir uma serie de fatos e documentos que levantavam a hipótese do assassinato de Jango e ajudaram a ilustrar esse período tão nebuloso de nossa história. Fico feliz que o filme tenha ajudado a chamar a atenção para esse período da nossa história, e de algum modo, contribuído para reabrir as investigações sobre a morte do João Goulart que ainda continuam em curso.
REDE SINA – Optar pela biografia é uma escolha ou algo que foi acontecendo?
Acho que foi coincidência mesmo. Aconteceu com a Cassia, com o Arnaldo e com o Mauro Shampoo. Mas meu próximo filme não sera biografia e seguirá mais o estilo do Dossiê Jango.
REDE SINA – Você se considera fã dos personagens dos seus filmes? Como se deu a sua relação com eles?
De certa forma, apôs anos dedicados a um tema e a um personagem você acaba se envolvendo com eles e cm sua história, mas durante o processo, é sempre necessário buscar o distanciamento critico para não comprometer o trabalho. Por mais que eu já gostasse da música da Cassia e do Arnaldo, por exemplo, na hora que liga a câmera, esqueço completamente a condição de admirador de sua arte e me preocupo exclusivamente em entender aqueles personagens, sua história e suas atitudes. Acho que a relação tem que ser sempre de total honestidade e transparência. Quando retrato alguém num filme, acho importante mostrar todos os lados dessa pessoa. Todos os erros e acertos, todas as suas virtudes e contradições. Busco retratar todas as características que que fazem daquele retratado, uma pessoa única.
REDE SINA – Quais as três primeiras perguntas que você se faz sobre cada personagem antes de iniciar a pesquisa?
Não sei se chego a fazer três perguntas, mas para mim a principal questão que faço sobre um personagem é: de que forma a vida daquela pessoa me ajudara a tocar em temas relevantes para o espectador. Um filme sobre a Cassia ou sobre o Arnaldo mais do que uma simples biografias, são filmes que levantam questionamentos e reflexões ao falar de temas como preconceito, diversidade, respeito as diferenças, responsabilidade de imprensa, a falta de memória do Brasil com seus artistas, relações afetivas, a importância de enxergar o outro. Assim como o filme do Jango também tocamos em temas como os horrores da ditadura, da operação condor ou a falta de memória do pais com sua própria historia. Eu gosto sempre de buscar temas que façam com que o espectador leve o filme para além da sala de cinema.
REDE SINA – Houveram surpresas no caminho sobre eles? Algo que lhe surpreendeu? O que destacaria em cada um deles?
Acho que o grande fascínio do documentário é que você nunca sabe onde você vai parar quando inicia um projeto. Mesmo que tenhamos a ideia muito bem formada na cabeça de como sera o filme, você vai encontrando infinitas variáveis que vão te levando por caminhos que você jamais imaginou. Minha ideia quando comecei a fazer o Loki era terminar o filme retratando a solidão e o abandono que aquele grande artista vivia. Só que, logo que eu comecei a filmar, aconteceu o inesperado e os Mutantes resolveram se juntar apôs mais de 30 anos. Quando eu vi, eu estava em Londres filmando um evento histórico e o ressurgimento da carreira do Arnaldo para o grande público e o filme tomou um rumo completamente diferente. No Dossiê Jango, quando iniciamos, tínhamos em mente usar a entrevista do Agente Uruguaio como fio condutor, mas quanto mais nos aprofundávamos na história, mais víamos que aquele personagem era apenas uma ponta do iceberg de todo aquele emaranhado e de repente estávamos no Uruguai e na Argentina vasculhando arquivos da polícia secreta e da CIA. Fazer documentário é uma verdadeira aventura transformadora. Quando termino um projeto, sou uma pessoas totalmente diferente de quando comecei.
REDE SINA – Nunca se interessou por ficção?
Eu adoro o cinema em todas suas formas. Adoro ficção e espero um dia fazer. Isso já esteve perto de acontecer algumas vezes. Mas o problema é que quando eu observo a realidade que nos cerca, ela sempre me parece tão mais criativa, tão mais bela e absurda do que a ficção que eu acabo pensando: “Ok. Só mais essa vez”.
REDE SINA – Você tem uma narrativa rítmica, que não cansa. Tem algum segredo?
Eu acho que isso vem da minha paixão também pelos filmes de ficção e sua linguagem . Tento buscar sempre inspiração nesse tipo de cinema, através do uso da trilha sonora, da montagem, da estrutura do roteiro, dos pontos de virada, da apresentação dos personagens.
Além disso, eu sou um viciado em cinema. Tenho uma meta pessoal de assistir pelo menos 365 filmes por ano. É uma maneira de me aprimorar também, buscando novas estéticas e linguagens. Acho que todas essas referencias de certa forma acabam se refletindo no trabalho mesmo que inconscientemente.
REDE SINA – Como é perceber as reações do público?
Quando a gente começa um projeto sabe que vai passar alguns anos dedicando todo o seu tempo a ele, vai passar noites sem dormir, lutar contra o orçamento, enfrentar problemas que você nem sabia que existia, se descabelar na montagem e muitas vezes sem perspectivas de ganhar um tostão. Por que alguém em sã consciência faria isso? Mas ai quando vejo a sala de cinema cheia com as pessoas reagindo e se emocionando com o filme, percebo que tudo valeu a pena. Essa é a maior recompensa. Eu realmente fico muito emocionado quando vou a uma sessão e vejo as pessoas ali prestando atenção e Fico pensando que cada uma dessas pessoas saíram de casa, pegaram um inibiu e, dentre todas as opções do mundo, escolheram ver o meu trabalho. É isso que me faz ter vontade de continuar e de melhorar como profissional.
REDE SINA – Qual o próximo projeto?
Quando acabou o Cassia, eu resolvi dar uma parada, pois eu já estava há 8 anos emendando um filme no outro e precisava de um descanso. Durante esse tempo, eu montei um filme chamado Geração Semente da Patricia Terra sobre o movimento musical do Bairro da Lapa no Rio e produzi o documentário O Deserto do Deserto dos cineastas Samir Abujamra e Tito Gonzales, todo filmado no deserto do Saara. Ambos devem estrear no ano que vêm. Mas agora o descanso acabou e já estou com dois projetos correndo simultaneamente. Como as negociações são sempre delicadas, por enquanto ainda é segredo. Mas logo que eu puder, conto pra você.
REDE SINA – Pode falar de política? Se sim, como vê a situação atual do Brasil?
Numa das ultimas entrevistas que fiz na Argentina pro Dossiê Jango, um dos entrevistados dizia que “Um povo que não conhece os erros de seu passado, corre o enorme risco de repeti-los”. Quando lançamos o filme, o Brasil estava dando inicio a comissão da verdade e eu via o pais com grande entusiasmo com sua democracia consolidada tentando dar conta de seu passado, 25 anos apôs o fim da ditadura. Passados 3 anos desde o lançamento do filme, hoje vejo com muita tristeza o Brasil divido com a democracia ameaçada e onde passeatas pedindo a volta dos militares ou um deputado que homenageia impunemente um torturador no Congresso é visto como algo normal. Mas o que mais me dói é ver o clima de agressividade e intolerância entre as pessoas crescendo com uma velocidade impressionante. O que antes era debate, hoje deu lugar ao insulto.
Acho que isso, de certa forma tem a ver com a frase que eu citei la no começo. Acho importante estimularmos o debate, a reflexão, o respeito a visões diferentes. Todos temos essa obrigação usando aquilo que sabemos fazer de melhor. Acho que o documentário brasileiro pode prestar uma humilde contribuição, nesse sentido.
REDE SINA – Qual sua sina?
Minha sina é observar a vida em busca de histórias inspiradoras, sabendo que para levá-las até o público provavelmente vou passar anos quebrando a cabeça, dormindo mal, lutando contra o orçamento baixo e por melhores condições de trabalho, tendo insônia, ansiedade e problemas de saúde e ao mesmo tempo, me sentindo extremamente gratificado por isso.