por Melina Guterres
Alvaro de Carvalho Neto é um dos nomes que muito tem contribuído para descentralização das produções audiovisuais. Foi produtor o filme Manhã Transfigurada de Sérgio de Assis Brasil (in memorian), primeiro longa-metragem produzido pela cidade de Santa Maria-RS e que ajudou a efervescer o cenário audiovisual local. Foi diretor do Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio Grande do Sul – SIAv RS. É realizador de cinema e televisão, produtor de longas e curtas-metragens, telefilmes e programas televisivos (TVE-RS, RBSTV, TV Cultura, Multishow, Rede Globo). É sócio fundador da Milímmetros AV. e hoje vive na Alemanha onde estuda distribuição Europa/América Latina e pesquisa para seus novos projetos.
No dia 20, quinta, estreia em Santa Maria e Porto Alegre seu primeiro filme como diretor: DEPOIS DO FIM. A estreia nacional está programada para dia 27. O filme é baseado nas memórias de Evaristo de Moraes, um ex-ferroviário, comandante de trem, personagem nonagenário que vive entre memórias e ruínas, e relembra o período áureo do mais importante meio de transporte terrestre do século XX. Ao revisitar o passado, o personagem traça um paralelo entre a história de abandono das ferrovias e sua própria história, e conclui: “Como pra tudo, o fim chegou.” (confira mais sobre o filme aqui)
Leia entrevista:
O que te motivou a fazer o Depois do Fim?
ALVARO DE CARVALHO NETO – Desde criança sempre fui fascinado por trens e ferrovias. Era meu brinquedo favorito. Por outro lado, meu avô, de quem levo o nome, era alfaiate da cooperativa dos ferroviários, de modo que esse tema se impõe de forma pessoal para mim. Além disso, Santa Maria tem um dos maiores patrimônios ligados à memória ferroviária no Brasil, basta ver a Vila Belga, que foi o primeiro conjunto habitacional do RS é uma joia dos estornos da Estação. Quem tem um pouco de sensibilidade visual não fica incólume a esse patrimônio, e para quem é de Santa Maria, lida com documentário, é interessado por memória e preservação, e é fascinado por trens, isso foi natural. Mas a maior motivação para fazer um filme sobre o assunto foi minha indignação de ver um país do tamanho do Brasil sem infraestrutura de transporte eficiente. Isso passa por questões políticas e econômicas que são históricas, mas que hoje são novamente repactuadas e devem ser consideradas pela sociedade, sob pena de mais meio século de descaso com o patrimônio público e ineficácia da infraestrutura de transporte do país. E sem falar do patrimônio histórico e cultural que muitas vezes não é valorizado e se perde. Falar de todas as motivações que me levaram à realização desse filme não caberia em uma entrevista.
Como foi o processo de produção?
ALVARO C. NETO – A produção do filme levou cinco anos até que ele chegasse às telas. Contei com o apoio de ferroviários, interessados pelo patrimônio, empresas e organismos públicos. É tanta gente que só os créditos do filme são capazes de manifestar a gratidão a todos. Minha manifestação de agradecimento aos patrocinadores do filme, a Eny, em especial na pessoa do Guido Isaía, e ao grupo CEEE. O filme foi financiado pelo Sistema Pró-Cultura RS – Lei de Incentivo à Cultura do RS e com recursos próprios da Milimmetros AV. Por envolver recursos públicos, nada mais justo que o filme tenha contrapartidas sociais e culturais; Depois do Fim é uma obra que tem em seu cerne essas questões. Além disso, um filme parcialmente financiando com recursos públicos deve ser exibido no cinema e alcançar o público de todas as formas, não apenas ser realizado para locupletar os realizadores e ficar em uma gaveta. Filme é para ser visto e se feito com dinheiro público, ainda mais. Isso deve ser um esforço de produção.
O filme percorre mais de 10 cidades nas fronteiras com Uruguai, Argentina, Santa Catarina e Oceano Atlântico com uma equipe a quem devo gratidão, e com uma equipe de pós-produção que elevou o já excelente material captado ao patamar de produção internacional. O processo entre filmagem e finalização ocorreu entre 2017 e 2018 e agora chega finalmente às telas.
E sobre a construção do roteiro e o processo de montagem?
ALVARO C. NETO – O roteiro e a temática do filme foram construídos a partir de pesquisa com ferroviários que viveram o período de ouro das ferrovias no RS. Época da VFRGS que comemora um século. Também apresenta o período pós-federalização e a posterior decadência do transporte ferroviário do país. Como em todo documentário, o roteiro é um guia de filmagem, mas é na montagem que o filme ganha sua forma e no caso do Depois do Fim, seu título. Foi um processo árduo mais muito prazeroso que compartilhei com Alfredo Barros, com quem nunca havia trabalhado, mas a quem admirava de longa data.
Por fim, o som realizado com a equipe primorosa do KF Studios. Aqui abro um parênteses para falar do música que, para mim em relação à montagem e ritmo, são fundamentais na montagem do filme. O Kiko Ferraz do KF me apresentou o Leo Henkin e a conexão foi imediata. Um artista sensível e consciente da sua arte e composição, mas ao mesmo tempo flexível a ponto de absorver minhas sugestões e transformá-las em algo ainda melhor. Tenho muito orgulho de toda a equipe do filme, produção e pós-produção, que abraçou o filme pela sua causa e temática não pelo orçamento, que não tínhamos.
Depois de tanto produzir, como foi dirigir? Tem algum trabalho que te inspirou?
ALVARO C. NETO – Minha trajetória como produtor sempre foi ativa na realização dos filmes. Como produtor criativo participava da construção dos roteiros, definição de elenco e todas as questões artísticas e estéticas do filme, buscando aliar a isso meu conhecimento técnico de produção. Esse exercício me permitiu ter segurança e flexibilidade na direção, já que também acumulei a função de produtor. Por esse motivo os aparatos técnicos do filme, som e imagem, são da melhor qualidade. Filmamos com lentes anamórficas, que conferem uma imagem mais alongada, semelhante à nossa visão. Mas não adianta os melhores aparatos técnicos se a operação não contar com senso estético e artístico. Em relação à imagem, eu e o Pedro Rocha estudamos o roteiro e definimos composições de cenas com planos longos e estáticos para evidenciar o abandono pessoal e material das ferrovias e do personagem. Da mesma forma aconteceu com a montagem e finalização de imagem e som. Já havia montado e finalizado o Manhã Transfigurada e o processo técnico para mim já era consciente, assim pude me concentrar nas questões estéticas e dramáticas do filme. Apesar de acumular funções, pude conscientemente separá-las e fazer que uma contribuísse com a outra de maneira orgânica e harmônica. Para mim foi um processo intenso, mas muito prazeroso.
O que pensas a respeito do patrimônio material e imaterial de Santa Maria?
ALVARO C. NETO – O patrimônio material histórico e cultural de Santa Maria é imenso, tanto em relação às ferrovias quanto a outros patrimônios, muito já foi perdido, mas muito existe, e o que não está recuperado deve ser preservado. Não só a Avenida Rio Branco e seu entorno deveriam ser tombados, mas considerados e valorizados como parte de história da cidade e do país. Já em relação à memória imaterial a minha preocupação é agravada pela avançada idade dos portadores dessa memória. Esse foi um dos fatos e das urgências que motivou o filme também. Por exemplo, as pessoas que viveram período da VFRGS têm entre 80 e 100 anos.
Com todas as dificuldades de fazer cinema no interior do RS como se sente hoje estreando como diretor de um filme realizado aqui em Santa Maria?
ALVARO C. NETO – Acho que as dificuldades de realização são muitas para realizar filmes no Brasil, mesmo com incentivos, existe uma dificuldade tremenda para que os filmes sejam produzidos e, o mais importante chegue às telas. No caso de documentários é ainda mais complexo, tanto para financiamentos, patrocínios, como para espaços de exibição. Em Santa Maria, por exemplo, temos uma excelente relação com o Arcoplex. Eu, particularmente, tenho um afeto pelo Mário Santos, que é uma pessoa que compreende a necessidade de incentivar a produção nacional e que sempre apoiou os projetos em que estive envolvido. Fizemos a pré-estreia do Manhã Transfigurada, entramos em cartaz com o filme mais de uma vez, além de sessões especiais. É disso que o país precisa, pessoas comprometidas com a cultura e a arte, e que não apenas priorizem o lucro e o mercado.
Mais difícil que produzir um filme, é ver que o filme não tem espaço para chegar ao espectador por falta de espaços adequados. Vamos enfrentar isso em outras praças, mas vamos fazer o filme circular o país.
Quais os próximos passos do filme? E quais seus projetos futuros?
ALVARO C. NETO – Agora o foco é na distribuição do filme, percorrer o maior número de cidades e atingir o maior número de espectadores. Projetos futuros são muitos, mas todos em suspensão por conta do lançamento do filme. Quem sabe faça um filme sobre as ferrovias na Europa, onde estou vivendo agora.
O que diria ao Sérgio de Assis Brasil hoje?
ALVARO C. NETO – Obrigado meu amigo, esse filme também é seu e de Santa Maria. Quem sabe um dia veremos teu sonho acontecer: um curso de cinema em Santa Maria para incentivar os talentos que daí precisam migrar para viver dessa arte.
Qual a sua sina?
ALVARO C. NETO – Minha sina é seguir pelos caminhos, observar e deixar que a vida se apresente como ela é, então questioná-la e aguardar pacientemente a sutil reflexão.
CONFIRA O TRAILER E INFORMAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO DE DEPOIS DO FIM AQUI
INGRESSO SINA:
Leitores da Rede Sina pagam meia-entrada nas sessões do filme DEPOIS DO FIM em Santa Maria e Porto Alegre. Imprima o flyer e apresente na bilheteria.