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E são tantos Bebês Renas, por Felipe Freitag

*Aviso de gatilho: este conteúdo traz temas como violência sexual e abuso infantil*

“Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?”

(Caio Fernando Abreu)

Há dezesseis anos, Eduardo entrou pela primeira vez naquele consultório. Com medo, parecia que aquelas paredes brancas gritavam mais do que a sua mente. Com estranheza, parecia que aqueles quadros aquarelados pincelavam mais pavor do que a sua mente. O lugar desconhecido, também, desconhecia-o. Todavia, era necessário. Nos últimos três anos, depois do término do Ensino Médio, tudo ficara mais confuso do que antes. Não tinha coragem nem de puxar a cordinha do ônibus para parar no local desejado. Não conseguia trocar mais do que duas ou três palavras com desconhecidos. Era um sujeito que parecia ser feito para a inabilidade social.

O terapeuta abre a porta da sua sala e solicita que Eduardo entre. Cumprimenta-o com as mãos e direciona-o até uma poltrona verde e macia. Ao lado da mesma, lenços de papel e água. De frente, em poltrona semelhante, Tobias, o terapeuta, acomoda-se e diz: Como posso ajudá-lo? Eduardo não sabia por onde começar. Diante do silêncio desse, Tobias permanecia também em silêncio (com olhar de quem sabe da dor do outro).

Tempos, cerca de seis meses depois desse primeiro encontro, Edu, que não gostava que o chamassem pelo nome completo, porém adorava que pronunciassem corretamente seu sobrenome de origem alemã, já se sentia íntimo daquele espaço. Agora, aquelas poltronas que pareciam tentáculos de um animal marinho a tentar afogá-lo, tinham textura como que de um ursinho de pelúcia da infância. Foi, nessa consulta, que tudo começou a brotar e que a cordinha do ônibus, a cabeça baixa, o corpo teso, o olhar triste, a recusa do toque…foram vomitados como consequências.

“teve um dia que ele me levou para pescar e foi o pior dia ele me penetrou e escorria sangue pelas minhas pernas sem pelos pequenas e desengonçadas e eu chorei muito e ele pegou a água do açude e lavou minhas pernas para tirar o sangue e falou que eu não podia contar nada para os meus pais pois senão eles iam ficar bravos e tristes comigo eu pensava em Jesus como que ele deixou me machucarem se eu ia sempre na missa.”

“então tudo começou quando na hora da sesta me colocavam dormir com o tio Bartolomeu e ele aproximava meu corpo frágil perto do dele e colocava minhas pequenas mãos em seu pênis sempre dizendo que aquilo era carinho entre familiares e com o passar do tempo ele foi colocando a minha boca em sua genitália dura e dizia que amor era assim e que meus pais ficariam tristes se eu contasse alguma coisa e podiam até me bater.”

“no sofá amarelo da sala vendo TV ele se posicionava na frente de mim e deitados ele colocava minha mão no pênis dele tenho vergonha de falar pau e eu comecei a me sentir cada vez mais culpado por deixar ele fazer aquilo comigo mas nunca ninguém tinha me explicado sobre essas coisas.”

“uma vez ele chamou um vizinho que tinha a minha idade e fomos comer pitangas no potreiro e daí ele colocou o cuspe dele nos nossos pênis e ficou masturbando a gente e eu sempre fiquei me perguntando se ele fazia isso com outras pessoas dos cinco aos seis anos isso foi acontecendo de modo sistemático e eu comecei a ficar retraído e a chorar quando íamos visitar a casa em que Bartolomeu morava alguma coisa não estava certa foi o que pensei e aquilo tudo parou porque eu não saia de perto da minha mãe mais e tudo foi sendo colocado numa caixinha mental e desde então eu nunca mais fui a mesma pessoa eu sangrava como o sangue que escorreu das minhas pernas infantis era errado o que ele fez comigo me dei conta mas ao mesmo tempo eu sentia culpa como se eu tivesse culpa nisso.”

Eduardo tomou um café, atualmente descafeinado em razão do uso de lítio, fumou um cigarro e foi ver televisão. De forma aleatória iniciou uma série chamada Bebê Rena. Com uma enorme preguiça depois do almoço, não deu de início muito atenção ao que assistia. Por volta do terceiro episódio, a série o conquistou. Já não havia preguiça. De repente, em um episódio posterior, eis que Edu foi arrebatado por cenas em que um homem era abusado sexualmente por outro homem. A cena em que Donny vai tomar banho e sente uma forte dor em seu ânus fez Edu chorar, porque ele já havia sentido aquela dor também. A única diferença é que isso ocorreu com ele quando ele era criança. Carne imaculada depois renhida.

“pensem em uma criança de 5 anos tendo seu ânus totalmente destruído por um cara mais velho pensem pensem vocês tem noção de como é a dor de um pênis de um adulto adentrando as carnes de um menino de 5 anos e aquele sangue escorrendo pelas pernas e o choro e os gritos e as mãos monstruosas do cara tapando sua boca e no fim na vida adulta você ter cicatrizes anais e isso te sabotar mais ainda sobre sua insegurança corporal pensem por favor pensem pensem pensem isso cabe na cabeça de vocês porque na minha isso percorre todo dia pelos meus neurônios e sinapses e Meu Deus por que me abandonaste.”

Desligou a televisão e foi correndo até o banheiro. Vomitou abundantemente uma água viscosa. Deitou, no chão limpo do banheiro, cheirando à lavanda, e entre tremores e lágrimas e gritos só conseguia pensar que continuava sendo aquele menino machucado em todos os sentidos possíveis, aquele garoto arredio que foi perdendo a alegria de viver aos poucos, aquele garoto que arredio tentava realizar os seus sonhos e não conseguia. Enviou mensagem pelo WhatsApp para seu terapeuta e para seu psiquiatra. Precisava ouvir mais uma vez aquilo que há anos tem sido dito: “você é forte, você conseguiu driblar tanta coisa sozinho, você não tem culpa do que aconteceu, você era uma criança…” Lembrou de Enya e foi ouvir Only time para tentar acalmar-se.

“Efexor Rivotril Quetiapina Zolpidem Remeron Soltab Carbolitium etc etc tantos remédios ao longo desses anos tantas sessões de psicanálise e eu ainda me sinto mal eu ainda não resolvi ter sido estuprado quando criança cadê a justiça cadê a justiça eu perdi minha adolescência eu só dei meu primeiro beijo aos 20 anos eu me sinto sujo como se somente uma lama miraculosa pudesse me deixar limpo eu me autossaboto a todo instante eu tenho a autoestima baixa eu tenho desistido assim como naquele dia em que me entupi de remédios drogas e álcool tentando cometer suicídio eu ainda rejeito acho que eu sou um rejeito dessa abominável história toda afinal onde está a justiça.”

Eduardo, calamitoso pelas lembranças vívidas, foi até o Facebook, ao Instagram e afins. Tentou encontrar o garoto que havia sido abusado junto dele. Apareceram inúmeros perfis. Qual seria o do garoto já homem? Enviou mensagens a pelo menos 21 perfis de Marcos Stubal, na esperança que algum deles fosse aquele garoto dos anos 1990. Após semanas, um dos perfis respondeu:

_Olá, Eduardo. Que bom receber sua mensagem. Não sabíamos um do outro a mais de 25 anos. Como você está?”.

Eduardo exultante:

_Oi, Marcos. Comigo as coisas têm ido e contigo? Preciso te fazer uma pergunta.

_Diga!

_Você lembra daquela vez em que Bartolomeu molestou eu e você no potreiro do sítio perto dos pés de pitanga?

_Nossa. Eu espero por essa pergunta há mais de 25 anos, Eduardo. Não só lembro como também lembro de quando ele fazia isso somente comigo e com outros garotos da vizinhança.

Conversaram por horas pela rede social já que Marcos morava no Mato Grosso do Sul e Eduardo no Rio Grande do Sul. Falaram sobre a justiça dos homens que não tem mais como ocorrer devido à prescrição do crime. Eduardo falou da Lei nº 12.650/2012, popularmente conhecida como Lei Joanna Maranhão, enviando um link que continha a seguinte informação: “Ela estende o prazo de prescrição para crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes. Antes de sua promulgação, o prazo de prescrição começava a contar a partir do momento em que o crime era cometido, o que muitas vezes impedia que os agressores fossem responsabilizados, dada a dificuldade das vítimas em denunciar os abusos de imediato. Estabeleceu-se um novo prazo prescricional para esses delitos. Passou-se, então, a admitir que a vítima noticie o crime em até 20 anos depois de completar dezoito anos de idade.”

Eduardo ainda tinha chances de denunciar. Dois anos para ser mais exato. Marcos não podia mais. Eduardo e Marcos então uniram-se por um tipo de justiça que não tem nome. Trocavam mensagens todos os dias. Compartilhavam das mesmas dores, dos mesmos sintomas pós traumáticos como, por exemplo, Transtorno de Ansiedade Generalizada. Ninguém da família de Marcos sabia do ocorrido. Já Eduardo havia contado aos poucos. Em 2008, para sua irmã. Em 2018, para seu irmão. Em 2019, para seus pais. Havia uma descrença dos familiares, principalmente porque Eduardo era gay. Marcos era heterossexual, então, ajudou Edu a conversar com sua família sobre esse aspecto. Marcos prefere não contar. Somente sua esposa sabe.

_Por que você não denuncia, Edu?

_Sabe, a cidade é pequena. O pessoal de lá já não me vê com bons olhos por eu ser homossexual. Tenho muito medo de acabar sendo tachado como culpado por algo em que eu fui a vítima. E ele é influente hoje em dia.

_Será que ele abusou de outros garotos ou garotas ao longo desses anos todos?

_Certamente, sim.

_Então, pode ser que se fizéssemos alguma ação as vítimas possam surgir e, com isso, ganhamos força e coragem.

Eduardo e Marcos, no final do ano, próximo ao Natal, encontraram-se em Porto Alegre. O abraço que trocaram foi como um acalanto no coração, nas dores mentais e físicas sofridas por tanto tempo. Um abraço demorado. Um abraço de somente quem passou por tudo isso e carrega e sempre carregará a mesma ferida aberta sabe e sente o que é.

No primeiro dia do ano, na fachada de casa de Bartolomeu, uma enorme pichação surgiu: ESTUPRADOR. A justiça, por ora, estava feita. A cidadezinha estava avisada. Mas a justiça ainda não terminou…

Eduardo, em meio ao burburinho criado, na cidade, somente conseguia pensar, em uma frase de Jean Paul Sartre, dita certa vez por seu terapeuta: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.”

No fundo, ele sabia que as suas pernas ensanguentadas, aquele líquido espesso e vermelho, ressurgia como tinta na palavra pichada da casa de seu abusador.

 

*Se você foi abusado sexualmente ou conhece alguém que foi, denuncie: 

O Disque-denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes atende em um número de utilidade pública, o Disque 100.

O Conselho Tutelar (CT) é um órgão administrativo municipal, autônomo, responsável pelo atendimento de crianças ameaçadas ou violadas em seus direitos.

Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) realizam o atendimento em atenção básica à população em geral, e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) oferecem o atendimento de média complexidade, que inclui o atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

Linha direta é um aplicativo que permite enviar e receber alertas de emergência de maneira rápida e com localização precisa. No Linha Direta você cria sua rede de contatos e aciona um aviso em apenas alguns segundos. Você também pode facilmente determinar no alerta que seus contatos avisem a polícia. A ajuda chegará muito mais rápido! Ao fazer um alerta, imediatamente é iniciada a gravação para que a pessoa diga o que está acontecendo ou digite enquanto o áudio é gravado. Após este passo o alerta é imediatamente enviado aos contatos de emergência, já com a localização exata.

O aplicativo Sabe é um espaço seguro para que crianças e adolescentes acessem informações sobre direitos, aprendam a identificar diferentes tipos de violência e busquem ajuda. Tudo isso na palma da mão. Este é o aplicativo Sabe – Conhecer, Aprender e Proteger, lançado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e já disponível para dispositivos com sistema Android ou pela internet.

 

FELIPE FREITAG é graduado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela UFSM e é mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Professor a mais de dez anos, dedica-se, também, à escrita literária. Atualmente, voltou a escrever com certas constância (o que tem sido maravilhoso para um sujeito com depressão que chegou a perder o sentido da vida…)

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