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Das despedidas por Rosana Zucolo

Não sei por quantos anos fui paciente do Paulo Tadeu.  Acredito que por mais de 20 anos. Tempo suficiente e consultas em diferentes circunstâncias da minha família, o que me permitiu chamá-lo pelo nome ao invés de doutor ou senhor.

O consultório médico tem algo de sagrado quando a sensibilidade de quem atende, realmente se volta para aquele que está sendo atendido. Pura humanidade que se desdobra no cuidar do outro.  Ele era desses médicos em quem a gente confiava sem titubear.

Acompanhou meu pai por diversas vezes, mesmo quando já não havia mais nada a fazer. Era incansável na atenção e nunca se recusou a atendê-lo. Nas últimas vezes, delicadamente, acolhia a família e enfatizava que a medicina servia para o paciente ter qualidade de vida e não para prolongar o sofrimento.

Meu pai partiu, ele continuou atendendo a minha mãe que esbanja saúde aos quase 90 anos;  a mim, cujo coração não iria me matar, “mas o colesterol e os triglicerídeos altos podem fazê-lo”, dizia entre risos.

Consultar com ele era terapêutico no sentido amplo da palavra. Entre o exame clínico e a prescrição da receita contava-se e ouviam-se histórias, vivências em família e trabalho; traçavam-se paralelos entre casos clínicos similares; trocavam-se notícias de amigos próximos em comum e, não raro, discutia-se civilizadamente os rumos da política no país, pois tínhamos posições diametralmente opostas. Aquele consultório era um espaço dialógico. Ali era possível rir muito e, às vezes, chorar.

Certa vez fui fazer o check-up anual num contexto entre o agravamento da doença do meu pai e o prazo do fim do doutoramento com tese a entregar. Pacientemente me ouviu, mega estressada, expor a angústia e os sintomas. Fiz a bateria de exames, incluindo o holter por 24h e, segundoo qual, morri à meia-noite e ressuscutei às 6 da manhã. O coração não tinha nada, mas a cabeça dava voltas por conta da ansiedade e a pressão arterial estava a oscilar. Contou-me que algo similar ocorrera com ele num período tenso de concurso e, então, antes da prova, tomou um vasodilatador que o deixara muito tranquilo. Saí de lá com a receita do medicamento e a sensação de estar mais leve por ter encontrado alguma solução. Só não recordo se o dito remédio fez o efeito esperado, mas entreguei e defendi a tese, meu pai faleceu poucos meses depois e a vida prosseguiu.

Outra vez, enquanto aguardava na clínica para fazer um eletro de esforço, ouvi uma voz masculina revoltada e sôfrega no compasso acelerado da esteira na sala ao lado. Num gauches sem freio entre a barbaridade e o praguejar até a última geração da medicina, chegou, suando bicas e com uma toalha no ombro, um amigo de adolescência na cidade de Rosário, conhecido pelo apelido de Louco.  Foi um destes cruzamentos de pacientes que se conhecem e, depois de certa idade, começam a se encontrar nas antessalas dos consultórios médicos.  Contou-me então que, literalmente, havia sido salvo pelo Paulo Tadeu um par de vezes nos últimos tempos. E  sim, são muitas as histórias.

Na condição de médico me acompanhou nos anos da longa doença do Clovis. Minha última consulta foi em janeiro ou fevereiro passado. Havia dois anos que eu não fazia exames por conta das demandas paliativas que nos assolaram. E foi quando soube que ele estava retornando ao consultório em meio ao tratamento da doença que o acometera. Um difícil percurso amenizado pela ligação aos seus afetos diretos e pelo gosto de viver. Estava feliz por ter retomado o trabalho. Conversamos, à revelia do tempo, sobre o adoecer, os tipos de tratamentos, suas sequelas e resultados, o luto, a esperança, a escolha por viver. Não sabia que ali seria um adeus.

Há um sentimento de orfandade quando um médico que cuida da tua família, deixa este mundo. Acredito que a maior parte dos seus pacientes deve estar compartilhando o mesmo pesar.

Penso ter sido ele um médico que se diferenciava também por não seguir a tendência privatista instalada na medicina atual.  Nunca limitou os atendimentos dos convênios de saúde, sempre pedia que o paciente retornasse ao consultório com os exames, porque preferia conversar a dar resultados por email ou whatspp.  Paulo Tadeu gostava de gente e de cuidar delas.  E na condição de quem foi cuidada por ele, desejo que o reconhecimento à sua competência com o médico e generosidade como pessoa, sirva de alento à sua família, aos quais se referia com tanto carinho.

 

 

Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa.  Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…

 

 

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