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As almas e os corações do Rio Grande por Elaine dos Santos

Já faz alguns dias que tento escrever sobre as noites e os dias “do sem”. Desde o Natal de 2022, quando tive um quadro grave de Covid-19, apesar das quatro doses da vacina (tenho comorbidades que me tornam paciente “preferencial” ao óbito em caso de Covid), a minha memória não me ajuda, ainda assim, creio que as chuvas começaram bem antes de 30 de abril.

Naquela noite de 30 de abril, choveu muito (“chuva de balde”, como se diz por aqui). Ficamos sem luz, sem telefone, sem internet. Amanhecemos sem água e sem as cabeceiras das pontes que dão acesso à cidade. Na outra via de acesso, o rio inviabilizava qualquer possibilidade de travessia. A minha “cabeça” (pensamento, emoções, reflexões) parece presa àqueles dias.

Passei a usar a internet de um posto de combustível, com gerador próprio, que disponibilizou wi-fi e isso era uma angústia: eu precisava trabalhar, eu precisava entregar trabalhos já revisados, eu precisava explicar para as pessoas que eu enfrentava dificuldades.

Na cidade, começou o corre-corre. Primeiro, abastecimento de carros; depois, supermercado, havia o temor do desabastecimento. As pessoas protagonizaram cenas de “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Inquietava-me pensar nas famílias que não haviam recebido aposentadorias, benefícios sociais, salário mensal.

No ginásio municipal de esportes, havia desabrigados. Eram tantas histórias daqueles desabrigados na cidade e dos desabrigados que vieram da área rural. Uma das histórias que me foi contada em algum momento o foi por uma mulher resgatada na noite de 30 de abril. “Professora, ouvia, enquanto o barco avançava, o latido de cães, o mugido de bois, que ‘pediam ajuda’, que morreriam”. Claro, ela nada poderia salvá-los.

Eu cresci em cidade interiorana, com familiares residindo em área rural e, em função das atividades laborais do meu pai, conheço quase todo o interior do município. Ficava (e ainda fico) a me perguntar o que era pior: sair de casa, abandonar tudo ou voltar para casa, com tudo enlameado e, como alguém me disse: “Lodo; cheiro de lodo; freezer, geladeira, armários com alimentos estragados. Uma vida para limpar e recomeçar”.

Por formação profissional (sou economista, antes de ser professora), tenho profunda impaciência com o conformismo da população em geral: “Vai passar”; “As pessoas vão se reerguer”; “Logo, será passado”. Não, não será passado para ser esquecido.

Nos abrigos para animais em Porto Alegre, há cães que “nadam” embora estejam em ambiente seco, sem água; há cães que não dormem nas casinhas que lhes estão disponíveis, mas permanecem nos telhados. Como se sentirão os homens e as mulheres?

Conheço Sinimbu, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio – as mais devastadas – e quase todas as cidades atingidas pela enchente. Quando pensei nisso, lembrei-me de um vídeo do grupo U2, com a música “Miss Serajevo”, em que uma moça caminha pelos destroços da capital da Bósnia-Hezergovina, semidestruída durante uma guerra civil.

Procurei pesquisar sobre a cidade hoje em dia. Está praticamente toda reconstruída, mas, por cerca de dez anos, ainda que recebesse turistas, que tivesse a sua funcionalidade restabelecida, os habitantes conviviam com destroços da guerra.

Imagino o Rio Grande – particularmente, o Rio Grande do Sul dos vales Taquari, Antas, Caí, Sinos – assim…um estado que levará 10, 15 anos para a reconstrução. Saciamos a fome, protegemos do frio. Há cidades para serem reconstruídas, mas há almas…há almas, que precisam de amparo, de apoio, de carinho. Perdoem-me aqueles que nos compararam aos antigos centauro dos pampas (meio homem, meio cavalo), nos imaginaram resilientes como dois cavalos que esperaram socorro: o medo, a tristeza, o desamparo não são míticos.

 

Elaine dos Santos – De Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria, autora do livro “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe”, adaptação de sua tese. Professora universitária aposentada, com passagem pela URCAMP, ULBRA, FISMA, UNIFRA. Banca de avaliação de redações dos concursos PEIES e vestibular da UFSM entre 2000 e 2013.  Atualmente, atua como revisora de textos acadêmicos. Participa de antologias e coletâneas literárias.

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