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Aquele do placebo, por Kenny Teschiedel

A consulta tinha sido marcada para às quatro, mas o relógio marcava duas e dezessete e ele já sacodia o tornozelo, ansioso para que abrissem a porta e chamassem por seu nome. A sangria desatada para cessar seu sofrimento chegaria ao fim.

_Como posso lhe ajudar? – pediu o médico.

_Estou aqui porque quero esquecer. Me recomendaram o senhor, disseram que é o melhor da área.

Quem chegava àquele consultório tinha a mesma queixa. O sofrimento ia das palpitações à insônia. A lembrança do fato ocorrido atrofiava o sujeito. Em casos mais graves, poderia causar distração crônica e gradativamente contrair outras complicações, como taquicardia, asma e, mais grave delas, a falência múltipla.

O procedimento era simples, embora sua eficácia não fosse totalmente segura. O doutor passou a explicar cada uma das etapas, da cisão feita na lateral do peito e o período de recuperação que, imprescindivelmente, exigia o isolamento para evitar o despertar das mesmas emoções e reativar a memória. Naquele falatório todo, o rapaz cortou as explicações do médico:

_Quanto? – perguntou.

Acreditando tratar-se de valores, o profissional floreou o assunto exibindo seu extenso currículo e atribuindo números, mas não era disso que o paciente queria saber.

_Quanto vai doer?

Uma dúvida frequente também. E a resposta, por si só, habitual:

_Em caso de amor, a dor é maior. Não tem anestesia pra isso.

O enfermo arregalou os olhos. Seu estranhamento logo foi percebido e não precisou perguntar como então se dava a operação.

_Arrancamos essa lembrança à unha.

O jovem então se contorceu na cadeira. Era o preço que tinha a pagar. Depois, suturava e seguiria a vida normalmente. Estaria livre para plugar os fones de ouvido e não chorar pela música que lhe remetia ao envolvimento que tivera. Quando pegasse o carro, não daria voltas e voltas pelo parque em que deram o último beijo. E, antes de dormir, seu telefone apagaria a luz sem receber o tradicional “boa noite” que tanto esperava, mas ciente que a mensagem não chegaria.

Enquanto negociava a melhor forma de extrair aquela lembrança, cogitou a possibilidade de permanecer com ela, mas livrar-se do arrependimento trazido por ter vivido aquilo. O custo-benefício era incomparavelmente mais vantajoso, pois daria à dor um outro sentido, colocaria noutro lugar. Uma luxação, uma dor de dente, quem sabe?

Tempos depois, o curativo fronteiriço abaixo da axila esquerda e rente à costela começou a rasgar. Andando pela rua, ainda mantinha a lembrança. Percebeu isso ao deixar um sorriso escapar quando o coração reconstituiu – sem sangrar – os olhos que tinham lhe furtado à pinça e bisturi. Esbravejou contra o médico, já que não tinha sido capaz de esquecer.

Em um exame simples, a olho nu, o médico engoliu a chuva de xingamentos pelo suposto serviço mal feito. Orgulhoso acompanhou o moço para fora do consultório:

_A ferida está aí. Só que agora não dói mais.

 

 

Kenny Teschiedel (1992) é psicólogo, licenciado em Letras – Língua Portuguesa, pós-graduado em Psicanálise, Gerontologia Social, Orientação Educacional e Gestão de Pessoas: Treinamento e Desenvolvimento. Autor de nove livros.

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