Uruguaiana, 17 de julho de 1994, a cidade toda estava em silêncio. Lembro-me que quando o Roberto Baggio partiu para a bola, eu segurei a respiração. Como se isso ajudasse em algo, mas segurei. O Taffarel, goleiro da seleção brasileira, deu um salto para a frente, já tinha feito isso antes, adiantando-se descaradamente. Fosse hoje, em tempos de VAR, certamente o juiz mandaria repetir a cobrança. Na época ninguém ligava para isso. A Cidade Alegria, meu bairro, ou melhor, a minha vila, estava toda em silêncio. E o chute do Baggio na bola foi muito forte, mas tão forte que ela subiu, e subiu tanto que passou por cima da goleira. O silêncio deu lugar aos berros, gritos ensandecidos, a minha rua toda explodiu em alegria. Meu pai gritou em euforia, os vizinhos se abraçavam, meus amigos na rua, todos corriam enlouquecidos.
Em 1994, se bem me lembro, quase ninguém tinha camiseta de seleção e quem tinha usava ela exclusivamente pelo futebol. Na rua, jogávamos assim, um time de camiseta e outro sem. Enquanto o Galvão Bueno ainda gritava “É tetra! É tetra!”, nós já estávamos batendo bola, a rua era o nosso campo, era o nosso Rose Bowl.
As valetas com esgoto eram as laterais e as nossas traves eram os chinelos havaiana. Sempre alguém era Romário, outro era o Bebeto e todo mundo queria ser o Taffarel e o Baggio, só para repetir o lance nas gramas da calçada na frente da casa do Zé Mário. Era 1994, eu tinha 13 anos.
Um pouco antes da Copa, no dia 1° de maio, bem durante o aniversário da minha tia Chica, aconteceu uma tragédia anunciada. Era a morte do Airton Senna. Anunciada, pois no dia anterior, no mesmo grande prêmio de Ímola, outro piloto, o Ratzenberger, também tinha morrido. E na segunda-feira, numa sala de aula do Colégio Dom Bosco, todo mundo que eu conhecia tinha os olhos cheios de lágrimas – O Senna morreu? Meu colega, Emiliano, ficava se perguntando. Não fazia sentido! A verdade é que todo mundo morreu um pouco naquela segunda-feira.
E assim o ano estava passando. A seleção brasileira tinha se sagrado tetra campeã do mundo. O Fernando Henrique Cardoso tinha vencido o Lula, e naquele ano não teve tentativa de golpe, nem teoria da conspiração. Lembro que o Collor seria julgado, na época eu até me confundia, achava que tinha à ver com a Zélia Cardozo de Mello e o lance das poupanças. E também tinha o PC Farias e nos jornais a palavra de sempre: corrupção.
Aconteceu muita coisa em 1994. Mas tenho uma lembrança que me marcou muito, acho que até mais do que a morte do Airton Senna, ou até mais mesmo do que o Tetra da seleção. Foi o dia em que Uruguaiana tremeu.
No final de novembro de 1994, exatamente no dia 30 de novembro, mal a noite tinha começado, meu irmão, eu e meus pais estávamos na mesa, prontos para jantar e assistir à novela Pátria Minha na TV. E foi então que um estrondo sacudiu tudo. Parecia que Uruguaiana estava num tipo de terremoto e numa explosão ao mesmo tempo. Mas pensem num estrondo. Da rua, dava para ver um enorme cogumelo de fumaça e um clarão no céu que iluminava o horizonte na direção do centro da cidade. E de quando em quando, ouvíamos mais estouros e mais clarões surgiam.
Meus vizinhos, todos ligando seus rádios, queriam notícias. Nada, um jogo da Associação Uruguaianense e algumas músicas. Até que, de repente, alguém disse numa estação de rádio que a explosão, o estrondo que todos tinham sentido, tinha ocorrido na Baixada. Todo mundo tinha algum parente, amigo ou conhecido que trabalhava em alguma banca da Baixada. Logo, meio que rolou um medo geral. A Baixada tinha centenas de bancas de camelôs.
Então, outra rádio deu a informação de que os bombeiros já estavam indo para o local. Um vizinho, que morava bem na frente da minha casa, enquanto fumava um palheiro, disse na sua simplicidade: “Tão dizendo que tem até pedaço de gente na rua”. Meu pai dizia: “Mas é certo que é no depósito de rojão do Favero”. – “Liga para a tua tia!”, dizia outra vizinha.
Na Baixada, o Camelódromo de Uruguaiana, além de lojas, bancas e restaurantes, também funcionava um depósito clandestino de fogos de artifício. Na verdade, não era clandestino, todo mundo sabia dele. E foi, justamente, esse depósito que explodiu. A cidade inteira foi para o local do incêndio. Eu me lembro muito daquela madrugada, o ventilador ligado no meu quarto e um cheiro de fumaça, de fuligem pairando por tudo, um odor de queimado que invadiu quase todas as casas da cidade. E veja que morávamos diversos quilômetros do lugar da explosão.
No outro dia, uma quinta-feira, eu e mais dois colegas saímos da escola antes do fim da aula e partimos rumo ao centro, fomos num ônibus da linha Cohab. Não conseguimos ver muita coisa, as ruas ao redor da Baixada pareciam uma zona de Guerra. As janelas dos prédios todas quebradas, fuligem, o cheiro de pólvora misturado com alguma coisa ainda mais terrível. Soldados do Exército. Policiais. Os bombeiros ainda tentando conter focos de incêndio. Um senhor, que conversava com outras pessoas, bem na esquina da Praça do Barão, falava da sorte da explosão não ter ocorrido durante o dia. Verdade. Seriam centenas de mortos.
Depois, com os anos, fui sabendo mais detalhes daquele dia. Descobri, e isso foi logo em seguida, que teve gente que foi até o local da explosão para roubar mercadorias e invadir lojas. Lá na minha vila, apareceu uma galerinha vendendo lençol e roupas por um preço “muito camarada”. E soube também de coisas terríveis, relatos de pessoas que encontraram pedaços humanos nos telhados de lojas próximas, o que até hoje levanta dúvidas sobre se realmente no depósito estava apenas uma pessoa.
O dono do depósito de fogos de artifícios era um argentino chamado Chadaian, que foi julgado e acabou recebendo seis anos de prisão. Na explosão morreu um rapaz de 20 anos, que trabalhava no depósito, Ramon Roberto Blanco. E também faleceu uma senhora, dona Ondina Cezimbra, vizinha do depósito de fogos de artifícios, a parede de casa desabou na hora da explosão e acabou caindo por sobre seu corpo. Os jornais deram conta de 09 feridos.
Dentre os sobreviventes, um poeta. E o seu salvamento e a sua retirada emocionante do fundo dos escombros foi filmada pela RBS TV. Era ele, Ubirajara Raffo Constant, o Biratucho (1938-2013) que, além de poeta, também era compositor, escritor e artista plástico.
O Biratucho escreveu a incrível poesia épica “O Retorno Bravo”, declamada milhares de vezes pelos CTGs do nosso Estado. No poema ele narra a vida de um homem velho que, da porta do rancho, vê o filho partir para uma das tantas batalhas da Revolução Farroupilha. O homem fica só, num misto de tristeza e orgulho. Depois de um tempo, alguém vai até sua casa e lhe diz que o filho morreu em batalha, tombou junto com todos os outros soldados. Numa noite, ao abrir a porta do rancho, o velho homem se depara com o filho, totalmente desconfigurado, ferido, ensanguentado e com o peito aberto por uma lançada. Eis que o pai, em vez de abraçar o filho que ele achava ter morrido, acaba por renegá-lo, acusando-o de covardia. “Maldito sejas! Covarde. Tu não é mais meu filho”. O filho, exausto, acaba caindo no chão do rancho e, antes de morrer, conta a verdade do que tinha acontecido. O poema poderia muito bem virar um filme. E é claro que eu não vou contar o final da história de “O Retorno Bravo” aqui, mas vou postar o poema no fim deste texto, vale a leitura. Ubirajara também escreveu letras premiadas em festivais nativistas, como no da Barranca e na Califórnia da Canção Nativa. Canções como “Mocito”, afinal, quem é que não lembra da voz de Cesar Passarinho cantando: “Antes tempo, quando moço, encilhava o melhor pingo. E saía aos domingos com as pilchas que eram uma gala”.
E não é que o Biratucho viveu a própria história épica? Sim, viveu e como um bravo ele retornou, ferido, mas retornou. Depois da explosão na Baixada, o poeta ficou totalmente soterrado, preso debaixo dos pedaços da sua própria casa, ajoelhado por duas horas. Permaneceu consciente, ouvindo uma Uruguaiana assustada e sentindo tudo que acontecia ao seu redor. No escuro, o poeta permaneceu com dor e com medo de acabar asfixiado pela falta de ar ou de morrer afogado pela água dos caminhões de bombeiros que entrava pelas brechas dos escombros. Falando sobre o ocorrido, um tempo depois, o Biratucho disse que ele teve um momento mesmo em que achou que iria morrer. E ao perceber a morte chegando, ele rezou. Rezou sem parar, se ao acaso ou não, acabou que tudo foi melhorando, ele disse que sentiu “uma paz profunda” e a dor e o calor foram desaparecendo. Era como se todo o medo e dor tivessem ido embora.
Assim, quando o poeta percebeu que haviam pessoas andando próximo de onde ele estava, começou a gritar e pedir ajuda. Um bombeiro, um argentino de Paso de Los Libres, que havia sido enviado com outros bombeiros para ajudar, ouviu o chamado. O bombeiro argentino foi o responsável por retirar o Biratucho do fundo das trevas. Tão logo o poeta foi salvo, o argentino sentenciou, numa fala sintética, mas tão certeira que até pareceu poesia: “Este es guapo!”. Naquele dia, o dia em que Uruguaiana tremeu, aconteceu o verdadeiro retorno bravo. O bravo Biratucho.
Retorno bravo Autoria: Ubirajara Raffo Constant Ali na porta do rancho, junto ao cusquito nervoso, o velho guasca orgulhoso olhava o filho partir. Também desejava ir com a mesma disposição, levando a lança na mão, pra se unir aos farroupilhas e pelear pelas coxilhas em defesa do rincão. Porém já velho e arquejado perdera a força no braço, tinha no lombo o cansaço do peso de muitos anos, mas era um dos veteranos com orgulho do passado, por ter a lança empunhado combatendo os castelhanos. Que gana tinha de ir, aquele velho guerreiro, de novo para o entrevero como gaúcho pelear,mas ficava a se orgulhar que embora velho e cansado tinha um filho já criado partindo no seu lugar. E ali na porta do rancho, cheio de orgulho e pesar, viu o filho se afastar com garbo e disposição, montando um flor de alazão, o laço preso nos tentos, o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão. Depois, com a estrada deserta, a noite foi se achegando, o pampa foi silenciando nas grotas e nos banhados e o velho guasca cansado no catre foi se arrimando, em silêncio memoriando entreveros do passado. Assim, a poeira dos dias cobriu o catre vazio do paisano que partiu do rancho para a guerrilha, levando na alma caudilha de guasca continentino, a fibra, a glória e o tino de campeador farroupilha. Já muitos dias depois um xirú trouxe a notícia: -A farroupilha milícia em que seu filho marchou peleando se dizimou. Morreram mas não recuaram e entre os bravos que tombaram dizem que o moço ficou. Num sentimento profundo o velho ficou calado, mas o seu rosto enrugado não pode a dor esconder, deixando livre correr, do fundo da alma ferida, uma lágrima sentida que ele não pode conter. Tristonha caiu a noite e mais triste a madrugada. Latia ao longe a cuscada, na quincha gemia o vento, e sem dormir um momento, ali no catre estirado, o velho ficou atado na soga do pensamento. Lembrou o filho em criança correndo o pampa em retoço, a melena em alvoroço soprada ao vento pampeano. Recordou ano por ano até que o piá ficou moço e ali da porta do rancho partiu p'ra revolução, montando um flor de alazão, o laço preso nos tentos, o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão. Estava assim recordando, quando lá fora um gemido lhe fez apurar o ouvido e despertar-lhe a atenção. E quando ouviu uma mão, naquela hora tão morta, forcejar de encontro a porta como querendo arrombá-la, sua visão ficou clara, voltando-lhe a luz e o brilho; num ímpeto caudilho a porta abriu com vigor e estarreceu-se de horror ante a figura do filho. Cambaleante, ensanguentado, as vestes feitas em frangalhos, o corpo cheio de talhos dobrado pelo cansaço, já sem força em nenhum braço, já sem poder ver direito, e com o meio do peito aberto por um lançaço. Fitando os olhos do filho o velho ficou calado. Estarrecido, espantado, vendo-o ali em sua frente. Então gritou gravemente: -Meu filho por que voltaste? Porquê? Por que não tombaste onde tombou nossa gente? Maldito sejas, covarde, tu já não és mais meu filho! Não tens o sangue caudilho, não aguentaste o repuxo, deixaste teus companheiros, fugiste dos entreveros, tu já não és mais gaúcho! Então a face do guasca que peleando não tombou, como um lançaço estampou a ira do coração. Prostrando-se rudemente, naquele gesto inclemente, desfalecido no chão, o moço sentindo a morte roubar-lhe o sopro da vida, com a alma triste e ferida, ali prostrado no chão, sem rancor no coração olhou para o pai à seu lado, e já num último brado fez a brava confissão: -Meu pai, eu não fui covarde, honrei meu poncho e minha adaga, fiquei coberto de chagas mas aguentei o repuxo. Fui valente, fui gaúcho, peleei com todo o ardor. E se aqui vim escondido foi p'ra salvar do inimigo o pavilhão tricolor. Abrindo a camisa ao peito, tirou em sangue banhado aquele trapo sagrado que até o fim defendeu, e beijando-o estendeu ao pai, num último esforço, e depois, curvando o dorso, o bravo guasca morreu.