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A LENDA DA LENDA DE IMEMBUÍ por Orlando Fonseca

Embora esteja consolidada, culturalmente, a origem lendária da cidade de Santa Maria, associada à figura mitificada da índia Imembuí e sua ligação com o guerreiro branco Rodrigo – depois Morotin, não há como afirmar a sua configuração no folclore da região centro do Estado.

Dentre as obras que recolhem narrativas lendárias do Rio grande do Sul, como as de Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja, do santa-mariense Roque Calage, entre outros, não há menção a um episódio com as características do drama da índia Imembuí. O primeiro registro de sua existência, que se tem conhecimento, é justamente um conto, uma obra ficcional criada pelo escritor santa-mariense Cezimbra Jacques, a qual faz parte de seu livro Assuntos do Rio Grande do Sul, publicado em 1912.

Segundo o testemunho do pesquisador Getulio Schilling, em sua obra biográfica sobre o autor, a história de Imembuí não preexiste ao texto do escritor santa-mariense. Aliás, vale ressaltar que naquela obra a narrativa que tem o título Imembuí, vem acompanhada, entre parênteses, da observação (conto indígena). Precedendo o texto, ainda, uma “Advertência”, em que assinala o aspecto ficcional do seu empreendimento literário. Como este texto veio a se tornar lenda é uma página um tanto nebulosa da história da cultura em Santa Maria. Em pesquisa realizada junto à UFSM, pelo grupo de pesquisa História e Literatura, do Mestrado em Letras, com a colaboração das bolsistas Gabriela Marzari e Andrea Severo (entre os anos de 1998 e 2000), foi possível identificar com precisão a primeira publicação de Imembuí, no Jornal A Federação, em 1911, não havendo qualquer outro registro do nome desta em publicações – livros, revistas ou jornais, na cidade de Santa Maria, ou mesmo no Rio Grande do Sul.

É a partir do texto de João Belém, História do Município de Santa Maria – 1797-1933, publicado em 1933, que se afirma a origem lendária desta cidade, tomando-se como referência o que então é chamado “Lenda de Imembuí”, embora o historiador não aponte registros históricos para confirmar sua apresentação. Isso contraria, inclusive, a sua própria pesquisa que indica o acampamento da expedição demarcadora (1794) a origem do povoamento. Anos mais tarde, outro historiador, Romeu Beltrão, ao apresentar sua obra sobre o registro histórico da cidade, não anuncia Imembuí como uma lenda a respeito da origem da povoação. A rigor, o texto de João Belém seria o documento historiográfico que assegura a existência da lenda, contudo, persiste a evidência do fato de que, antecedendo o seu trabalho, só se encontra o registro do conto de Cezimbra Jacques, o qual não figura nas referências de João Belém, ainda que a narrativa deste último mantenha parentescos evidentes com o conto original.

Como já se mencionou, Cezimbra Jacques não esconde o caráter ficcional de sua obra, indicando-a, na apresentação, como “singelo conto da Imembuí”, ainda que a cerque de elementos historiográficos e dados culturais da vida dos índios e da língua guarani: “somos os primeiros a reconhecer que não dispomos de nenhuma aptidão literária, apresentando este tosco trabalho, sem cogitar de dar-lhe beleza de forma e sim da utilidade que ele possa oferecer, com informações reais colocadas ao lado da fantasia”.[i] As referências contextuais e históricas servem como elementos de apoio ao texto ficcional, não como matéria de sustentação do mesmo.

Desse modo, e a bem da verdade, o mito não preexiste à construção ficcional, ou seja, o escritor não recolheu da cultura popular a sua referência para a criação literária. Ao contrário, via legitimação da autoridade do historiador citado, a ficção virou lenda e se estabilizou na história da cidade como tal. Partindo do pressuposto da origem ficcional da narrativa, é possível afirmar que Cezimbra Jacques pode ter sido influenciado por outras narrativas fundantes da cultura americana, em suas fases de consolidação da nacionalidade. Essa referência, ainda que implícita, responderia de alguma forma pelo caráter “lendário” que o conto passa a assumir com o tempo. A partir do dado indicado pelo próprio autor de haver um propósito nacionalista que o acompanha no projeto: “animado do patriótico desejo de quem aspira despertar nos componentes a iniciativa da formação de uma literatura do nosso caro torrão Sul-Rio-Grandense, com elementos puramente genuínos”, situamos a sua produção na corrente do projeto romântico, especialmente o de José de Alencar, o qual, com sua narrativa indianista, pretendia dar curso ao projeto de criar uma literatura genuinamente brasileira, a partir dos elementos do Novo Mundo americano. Por similaridade temática, a relação de uma índia, filha do chefe da tribo, com o homem branco colonizador ou explorador, é possível, assim, aproximar as personagens “Imembuí”, de Cezimbra Jacques, e “Iracema”, de Alencar.

Por sua vez, segundo estudos críticos, o autor de O Guarani sofreu a influência dos autores Fenimore Cooper, americano, e Chateaubriand, romancista francês. No caso do primeiro, destacam-se as novelas sobre os índios, especialmente os moicanos, e quanto a Chateaubriand, pelos romances Atala e René, que retratam dramas vividos entre europeus e índios americanos. Estudos recentes apontam uma relação de mão dupla entre a obra de Chateaubriand e as narrativas do século XIX nos EUA que recuperam o mito de Pocahontas,[ii] que é, seguramente, o primeiro episódio envolvendo a relação entre uma índia e um homem branco europeu. Poder-se-ia dizer que é esta a proto-imagem da miscigenação e das representações do conflito que daí advém.

O enredo do conto Imembuí, apresenta a protagonista como uma jovem índia da tribo dos Minuanos, filha do chefe Japacany e de sua esposa Ibotiquintã, que deu à luz dentro das águas do Arroio Taimbé, por isso o seu nome, que em guarani quer dizer “filha da água”. Em um confronto com bandeirantes em busca de índios para escravizar, os Tapes e os Minuanos unidos dizimaram os invasores, e fizeram dois prisioneiros: um, o mais velho, foi solto a fim de voltar e contar aos de sua nação o que os índios fariam com aqueles que viessem fazer escravos entre eles. O mais novo foi condenado à morte. Imembuí se apaixonou pelo jovem Rodrigo, e rogou por ele diante de seu pai, no que foi atendida. Os dois se casaram, e Rodrigo passou a se chamar Morotin, tiveram um filho que levaram para ser batizado em São Miguel das Missões, depois de se terem casado nos ritos da tradição cristã.

Pocahontas comporta no contexto da América do Norte as primeiras referências do choque das culturas indígena e europeia, aos primeiros dados a respeito da miscigenação, por muitos rejeitada, a ponto de ir ganhando contornos de lenda os diferentes pontos de vista que se aplicam às questões da sexualidade, da religião, da cultura e da formação étnica, com o privilégio e a supremacia da cultura branca, protestante, europeia. Nesse sentido, do folclore mexicano perdura a figura lendária de La Malinche,[iii] como um mito originário por muitos rejeitado, a ponto de constituir uma forma de xingamento à alusão à descendência dessa personagem: “hijo de le malinche”. Malinche era uma filha de aztecas, a qual foi vendida pela mãe para os colonizadores espanhóis. Ela então, como aprendera a língua espanhola, passou a atuar como intérprete de Cortês, o grande conquistador, vindo a tornar-se sua amante, com o nome de Doña Marina, após converter-se à religião católica. Além dessa rejeição à cultura indígena originária, Malinche é acusada de traição ao seu povo, uma vez que livrou Cortês e seus soldados de uma emboscada que Montezuma e seus guerreiros preparavam para destruir o colonizador. Por conta disso, Cortês conseguiu dizimar as nações indígenas e completar a conquista do México. Embora esses fatos sejam anteriores aos de Pocahontas, Malinche não se integra como narrativa fundadora, uma vez que durante muitos séculos foi rejeitada na cultura mexicana pelas razões já indicadas, deixando de cumprir um papel universalizante, como o do mito norte-americano. Na verdade, só se tornou mais conhecida pelo resgate empreendido por autores de fins do século XIX, como Ireneo Paz, avô do grande poeta Octavio Paz, cujo ensaio “Os filhos da Malinche”[iv] é obrigatório para se compreender o mito na difícil consolidação da miscigenação mexicana. Da mesma forma, em Iracema temos a valorização de uma origem étnica do povo brasileiro resultante do encontro do europeu e do indígena, sendo que a cultura desse último sucumbe, Iracema morre, dando lugar à proliferação do poder da civilização branca e da religião católica. Além disso, figurando o índio e o europeu como inauguradores da raça, ficaria o negro à margem do processo de constituição da identidade nacional. Esses dados podem ser verificados no texto de Cezimbra Jacques, em que o branco impõe, finalmente, a sua cultura, legitimando a origem da povoação em seu filho, batizado no rito cristão.

É comum se observar que, em nossa cidade, a memória das gentes e da vida cultural são relegadas ao descaso e ao desconhecimento. Desse modo é que, um autor importante por ser o primeiro escritor santa-mariense a ter uma obra publicada[v], ser um dos fundadores da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, ocupando a cadeira 19 e ainda por ser o precursor do movimento tradicionalista, com a criação do primeiro grêmio gaúcho, embrião do que se conhece hoje como CTG, e acima de tudo por ser o autor de uma obra que dá origem a uma personagem que o afeto transformou em identidade, não ter sido lembrado como uma figura histórica, como o devido respeito que merecia. Seus restos mortais, contrariando sua vontade expressa, permaneceram em uma sepultura comum no Rio de Janeiro, onde faleceu em 27 de julho de 1922. Para registro: o ano que vem marca o centenário de sua morte.

[i] JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro,1997, p. 101.

[ii] Cf. TILTON, Robert S. Pocahontas – the evolution of na american narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 58-63

[iii] CYPESS, Sandra M. La Malinche in mexican literature: from History to Mith. Austin: University of Texas, 1991.

[iv] PAZ, Octavio. O labirinto da solidão e Post-scriptum. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 62-82.

[v] Sua obra Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul, publicado em 1883, é o primeiro registro de uma publicação de escritor santa-mariense, segundo SCHILLING, Getúlio.

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