Quem diz para uma filha que ela vai ser cineasta? Quem acredita no potencial de uma mulher e a convida para uma produção? Quem dá oportunidade para mulheres periféricas no audiovisual? É um clube do Bolinha, sim!
O curta “Procuram-Se Mulheres”(2018), filme de estreia da diretora Rozzi Brasil, é fruto de uma oficina social e, em 2019, levou o troféu Rede Sina no Festival de Cinema e Vídeo de Santa Maria-SMVC. Rozzi Brasil é diretora, roteirista, produtora cultural, fotógrafa, filmaker, redatora, design, compositora, gestora de redes sociais, integrante dos grupos Samba das Guerreiras Presente e Procuram-se Mulheres, ambos formados a partir da realização do curta. Nesta entrevista ela conta um pouco como foi a realização deste documentário, onde mulheres conversam, propõem soluções, falam sobre samba, machismo, relação abusiva e violência policial.
REDE SINA: O que te levou a fazer esse filme?
Rozzi Brasil: Para responder isso tenho que contar uma pequena história.É curioso que eu só me vi envolvida no argumento desse filme, depois que ele foi ao primeiro debate no festival Cine PE. Eu observei uma situação – o quanto de sambas excepcionais compostos por mulheres mofam nas gavetas, o quanto de sambas ruins, quase sempre dos mesmos autores, vão para avenida nos desfiles de carnaval e o quanto de mulheres, boas cantoras e instrumentista,s acabavam por abraçar outras funções (não artísticas) a fim de se sustentarem e às suas famílias, porque não encontravam espaço. Mas eu não me via como potência realizadora de algum tipo de arte, então pensei o filme a partir do desperdício, do desprezo, da invisibilidade que eu via acontecer em todos os sambas que frequento. A oportunidade de fazer cinema me mostrou que eu era um talento desperdiçado também.
Eu trabalhei durante muito tempo numa empresa de capital misto do BB, tinha um bom salário e excelentes benefícios. Ao perder esse emprego, não consegui outra colocação similar e parti para o quê aparecia – vários temporários com salário insuficiente para manter um teto e suas contas pagas. Era um sistema tipo: um mês paga contas, no outro compra comida. Comecei a cobrar pelo que fazia como hobby, fotos, filmagens, textos de divulgação em redes sociais, organização de eventos… até isso, no mundo do samba, é bem complicado para quem não é sambista de berço, já passou da juventude e, sendo mulher, não conta com o apoio da confraria dos machos. rsrsr
Comecei a perceber que havia pouca grana circulando pelo samba durante o ano e a pirâmide de circulação desse capital, de oportunidades. Percebi que o segmento é um nicho de trabalho e, para variar, as mulheres estão lá embaixo dessa pirâmide, com menos oportunidade nas rodas, palcos e eventos, quase sempre chamadas para canjas, para “divulgar o trabalho” ou ganhar bem menos. Mesmo nas rodas, a gente leva canseira para conseguir tocar um instrumento e quando toca bem, ouve: “Você toca como um homem”…. E aí veio aquilo tudo que está no argumento. Eu tive curiosidade de saber quem eram aquelas mulheres que conseguiam, de alguma forma, estar no meio do samba, mesmo com seu trabalho sub-avaliado. Eu me via como uma apreciadora e nem percebia que todo o meu trabalho era dentro do samba: fotos de samba, vídeos de samba, negativas do samba…. Quando a gente está no centro de conflito por muito tempo, não percebe que há conflito. Me sensibilizei com as mulheres cujos trabalho eu admirava e parecia que só eu conhecia.
REDE SINA – Como foi o processo de produção?
Rozzi Brasil: Foi uma oficina social chamada Por Telas, idealizada por uma das filhas do Paulinho da Viola, a Cecilia Rabello que convidou o André da Costa Pinto para ser o orientador pedagógico do projeto e que, por sua vez, convidou os profissionais que sempre filmam com ele e foram instrutores ( cinegrafista – João Carlos Beltrão; Som – Daniel Tavares; editor – Ely Marques; Franz Lima pós-produção,créditos).
Foram 3 meses de aulas teóricas e um mês para filmar os 3 filmes escolhidos pela própria turma que foi reunida por meio de um edital. Assim, os alunos que não tiveram seus argumentos selecionados para serem filmados, escolheram uma área técnica para aprender a parte prática ao produzirmos os 3 filmes – a parte teórica todos aprendemos -, a prática cada um atuou na área técnica escolhida. Os que tiveram filmes selecionados ficaram apenas como diretores. O meu interesse era fotografia pós-produção.
O André queria que eu apontasse a câmera para mim e contasse a minha história, mas eu queria contar a história de muitas de nós. Ele sugeriu que em vez de chamar nomes já conhecidos, desse visibilidade às mais anônimas, por isso fiz um anúncio no meu perfil do facebook. Tive mais de 80 respostas em 3 dias, com envio de materiaa. Foi bem trabalhoso selecionar as personagens. Esse recurso de anúncio em rede social norteou e deu nome ao filme.
Foram 2 dias de filmagens na casa da Ruça, ex-presidenta da GRES Unidos de Vila Isabel, porque a minha “ideia fixa” de filmar na Casa do Jongo não se concretizou, a gente tinha ido lá pra fazer teste de câmera e prévia de entrevista com ela e o tamanho da casa ficou na minha cabeça. Ali teve encontros musicais com gente incrível, tipo Vinicius de Moraes, Candeia, João Nogueira, acho que até João Gilberto. Ali cresceu Mart’nália, viveu Martinho da Vila, era uma locação também sagrada e também conduzida por uma liderança feminina. No dia da filmagem, ela fez questão de fazer uma feijoada pra equipe inteira. Coisa que só acontece no samba.
REDE SINA: Você também é compositora de samba? Como é o seu contato com esse universo?
Rozzi Brasil: Não componho sozinha, sou só letrista. Essa aventura começou ano passado quando estive em duas parcerias: Arame de Ricardo, escola que desfila na Intendente Magalhães (grupo C) porque o enredo era o Jerônimo, o bailarino do carnaval, filho do Seu Jair do Patrocínio;
A outra parceria deu babado, foi o Samba das Guerreiras #Presente que surgiu no set de filmagem do Procuram-se Mulheres e competimos porque o enredo era Clara Nunes e a gente quis homenageá-la. Daí, continuei porque a líder dessa parceria é a Meri de Liz que tem o micróbio de compositora de samba, inclusive de samba de enredo. Um tremendo talento deixado de lado….Meu contato é total, integral o ano todo. Os shows que produzo são de samba, meus projetos sempre envolvem samba, meus amigos são sambistas, se não são, acabam ficando sambistas!
Mana, o samba salvou minha vida. Deve ter rolado uma troca de sangue, energia, cores e fluídos que nunca mais saí de perto dele. Não importa o que digam. Não sou “sambista de berço”. Depois que produzi um show com um punhado de bambas liderados por Tia Surica, ficamos amigas. Observei que ela é a última pastora, que ela não tinha na internet muita coisa além da feijoada, mesmo sendo aquela tremenda voz, a primeira mulher campeã “puxando” samba na avenida (1966). Então, comecei a segui-la para gerar material para divulgar essa coisa linda que ela é e faz pelo samba. Comecei a frequentar sua casa, voltei a frequentar a Portela, passei a desfilar na ala da comunidade da Portela, passei a participar de tudo na Portela, sempre como pessoa da comunidade. Agora estou na ala de compositores da escola.
Sou de um bairro carioca que tem mais escolas de samba do que Madureira, mas ninguém se importa com isso. Um bairro onde Candeia morou e fazia roda de samba em casa, poucos sabem disso. No entanto, isto garantiu que eu tivesse contato com o samba muito cedo, só não frequentava.
Mas quando eu fiquei desempregada, sem um tostão, o samba apareceu como única possibilidade de diversão. Era barata a entrada, o povo fica na rua ao redor das quadras e tem os ensaios de rua. O tempo e os amigos se encarregaram de me transformar em sambista
REDE SINA: O seu filme denuncia o preconceito que as compositoras sofrem. Você como diretora sente que o machismo no audiovisual também atrapalha a vida das mulheres?
Rozzi Brasil: Então, eu saí de uma arapuca e caí num alçapão! Kkk Atrapalha muita coisa! Como no samba, o audiovisual também tem o “lugar de mulher”, “as coisas de mulher”, o contexto do que é permitido à mulher, quase sempre de coisificação com ênfase na plástica e funções determinadas. Também tem a questão em que tudo no cinema é muito caro. Cursos, equipamento o que potencializa a dificuldade para as mulheres ingressarem no segmento, além de fazerem tudo para parecer que a ela está chegando no audiovisual agora. Quem diz para uma filha que ela vai ser cineasta? Quem acredita no potencial de uma mulher e a convida para uma produção? Quem dá oportunidade para mulheres periféricas no audiovisual? É um clube do Bolinha, sim!
REDE SINA: É difícil ser mulher?
Rozzi Brasil: Não. Ser mulher é fácil. Difícil é ser vista como ser humano de potencialidades e ter as mesmas oportunidades que a sociedade entrega ao homem. Difícil é perceber isso a tempo e fazer escolhas diferentes das que dizem que são “as nossas escolhas”. Ser mulher é fácil. Difícil é ter direito à dignidade que todos merecem e que para a mulher é muito mais complicada.
REDE SINA: Quais são seus próximos projetos?
Rozzi Brasil: Cheguei há pouco mais de 1 ano no audiovisual. Não tenho agente ou produção, aprendi muitas coisas pela dificuldade de patrocínio e apoio. Depois desse curta, faço um curso de extensão na UFRJ – o Universidade das Quebradas-, e como trabalho de conclusão de curso apresentei o projeto de um filme sobre mulheres com mais de 45 anos que retomam os estudos. Coincidentemente, esse curso completa 10 anos e abri o projeto para falar sobre esses 10 anos com a câmera apontada para as pessoas, alunos, mestres e o impacto desse programa na vida dessas pessoas.
Quando tudo isso acabar, meu projeto vai ser não cair em depressão pós-set. Para isso, acho que precisarei inventar uma oportunidade de continuar filmando, contando histórias reais, acordando, conscientizando pessoas através de filmes bem feitos, porque histórias lindas existem aos bilhões.
REDE SINA: Qual sua sina?
Rozzi Brasil: Achar um lugar no mundo e acender uma luzinha para que outros achem também. Batalhar pelo impossível, acreditar que talento e inteligência não são maldições num mundo que quer tudo pronto pro consumo. Tentar até o fim comunicar da forma que puder que as pessoas valem pelo que são e não pelo que têm. Pelo uso que elas dão as coisas e não por se deixarem ser usadas pelas coisas que inventam. Acho que é a minha sina. Até aqui falei sozinha e para ninguém. O audiovisual me deu um público, não quero perder isso.