Já escutei diversas vezes homens dizendo que não queriam ver tal filme porque era “de mulher”, só porque tinha uma mulher como protagonista, acho isso uma “doidera” sem fundamento
Vamos falar com Isabella Poppe, que ganhou a tradução do seu roteiro Aqueles olhos de carvão aceso para francês no Prêmio Cabíria. O roteiro é baseado na trajetória de Eugenia Álvaro Moreyra e busca trazer à tona os principais acontecimentos de sua vida, ressaltando seu empenho em vivenciar um espírito coletivo e os dilemas de uma personalidade forte e transgressora.
Isabella Poppe é formada em História pela Unirio e Cinema pela escola Darcy Ribeiro, pós-graduada em Dramaturgia pela Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires. Trabalhou na equipe de roteiro da primeira temporada da série de TV “A Garota da Moto”, criada por David França Mendes, que estreou nos canais SBT e Fox Life. Seu projeto de série “Repórter X” foi um dos selecionados para o Workshop Franco-Brasileiro de desenvolvimento de série do Festival Varilux, em 2015. Co-realizou o curta-metragem “Para Tetê”, parte do projeto Um Golpe, 50 Olhares, sobre o período da ditadura militar no Brasil e teve seu roteiro de curta-metragem “Cortina de Vidro”, selecionado para a fase de pitching da Rio Filme. Em 2016 recebeu o apoio do Rumos Itaú Cultural para desenvolver o projeto Eugenia Alvaro Moreyra, Uma Pioneira Desconhecida, que resultou na escritura do roteiro de longa-metragem.
É importante recordar que das 2.583 obras audiovisuais registras na ANCINE em 2017, somente 17% foram dirigidas por mulheres e 21% são de autoria feminina. O Boletim GEMAA 2: Raça e Gênero no Cinema Brasileiro (1970-2016) mostra que histórias narradas nos filmes nacionais de grande público têm protagonismo maior de homens (62%), quase todos brancos (50%). As mulheres somam apenas 39% desse resultado, que cai dramaticamente numa proporção de 18 para 1 se considerarmos as protagonistas negras.
O prêmio Cabíria em 2017 teve 120 roteiros e 30 deles foram indicados como semifinalistas por um Comitê de Seleção que contou com 20 roteiristas mulheres voluntárias. Depois de mais de 4 meses de trabalho, os roteiros finalistas indicados pelo Júri de 2017 foram: Continente de Thaís Fujinaga – Prêmio Cabíria (Melhor Roteiro com Protagonista Feminina): R$ 7.000,00 (venceu o prêmio pelo segundo ano consecutivo), Hamster, de Georgina Castro – Prêmio Incentivo às Mulheres Roteiristas: R$ 3.000,00*, Aqueles olhos de carvão aceso, de Isabella Poppe – Tradução para o francês oferecida pela empresa francesa Manivane e menção honrosa concedida pela equipe de curadoria do Canal Curta, A Terra e os Sonhos de Cássio Pereira – Consultoria de roteiro: oferecida pelo Maquinário Narrativo.
Confira a sinopse do roteiro e conversa com Isabella:
ROTEIRO: “AQUELES OLHOS DE CARVÃO ACESO”
Sinopse: Baseado na trajetória de Eugenia Álvaro Moreyra, o roteiro busca trazer à tona os principais acontecimentos de sua vida, ressaltando seu empenho em vivenciar um espírito coletivo e os dilemas de uma personalidade forte e transgressora. Com atitude pouco usual para as mulheres do período do início do século XX, Eugenia leva uma vida boemia, circula entre intelectuais, usa calça e paletó e fuma charutos. A narrativa se inicia no momento em que a personagem, primeira mulher a trabalhar como repórter no Brasil, some da redação do jornal para se internar disfarçadamente em um asilo para as moças consideradas desvirtuadas da sociedade. Eugenia parte em busca de pistas para desvendar o assassinato de uma jovem, mas acaba se deparando com a situação de confinamento das mulheres do internato, o que rende uma série de reportagens que repercutem em toda sociedade. Mas a vida de Eugenia muda quando ela se casa com o escritor Alvaro Moreyra, passando a dedicar-se ao lar e família. No entanto, quando perde a filha ainda bebê, passa a questionar seu lugar no mundo e inicia uma jornada de descoberta como uma revolucionária.
Como nasceu as ideia de seu roteiro?
Quando ainda estava na faculdade, cursando História, fiz um estágio em pesquisa sobre o escritor Alvaro Moreyra e foi aí que descobri sua companheira, Eugenia Moreyra, uma mulher parte de nossa História, mas que não é reconhecida como tal. Durante muito tempo fiquei com a figura dela na cabeça e fui pesquisando mais a respeito. Me impressionava que quase ninguém havia ouvido falar dela. Quando me formei em Roteiro Audiovisual, e influenciada pelo movimento feminista que ganhava fôlego, senti uma necessidade de escrever sobre ela. Hoje, quase 10 anos depois, Eugenia é a protagonista do roteiro “Aqueles Olhos de Carvão Aceso”.
O que você priorizara na construção de seus personagens?
Ao longo do tempo, fui percebendo que no momento em que definia o perfil das minhas personagens, costumava dar muita atenção a características físicas das mulheres, aspectos relacionados à aparência, enquanto o perfil dos personagens homens era mais psicológico, voltado para as características de sua personalidade. Hoje em dia mudei isso drasticamente. Atualmente, gosto de explorar as contradições que contribuem para deixar a personagem mais complexa e com mais força dramática.
Que tipo de roteiro você gostaria de assistir mais na tv e cinema?
Não sei apontar tipos de roteiro específicos, mas gostaria que os roteiros que abordam histórias sobre mulheres, e que se desenvolvam a partir do ponto de vista de uma personagem mulher, possam ser visto como histórias universais e não rotulados como “histórias femininas”. Já escutei diversas vezes homens dizendo que não queriam ver tal filme porque era “de mulher”, só porque tinha uma mulher como protagonista, acho isso uma doidera sem fundamento. Sobre um aspecto mais geral, sinto falta de roteiros menos explicativos, com diálogos mais dúbios, menos literais.
Já possui novos roteiros em mente? Podem adiantar algo sobre os temas? O que gostariam ainda de escrever?
Ideias sempre tem, né. Mas ainda não comecei a trabalhar num novo roteiro. Tô indo aos poucos, trabalhando o argumento, as personagens, deixando a ideia amadurecer primeiro.
Quais as dificuldades que sente no mercado audiovisual? Já sentiu algum preconceito, diferença por ser mulher?
Não posso dizer que eu pessoalmente tenha sofrido discriminação de gênero na hora de conseguir um trabalho no meio audiovisual. Mas não vejo o mercado muito aberto para pessoas iniciantes, muitas vagas exigem portfólio com obras já filmadas, por exemplo. Acho que por não ter formação acadêmica na área a dificuldade é ainda maior.
Saiba mais sobe o prêmio Cabíria:
A 3ª edição do Cabíria está com inscrições abertas até dia 24 de abril em uma parceria com o FRAPA – Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre. A curadoria do festival irá indicar até 15 roteiros que serão avaliados pelo júri do Cabíria, composto por 5 mulheres do mercado audiovisual. Estão aptos a concorrer: roteiros de longa-metragem (ficção) com protagonistas mulheres, escrito por ou em coautoria com roteiristas do sexo feminino. Prêmio: R$3.000,00
Regulamento geral e inscrições:
https://www.frapa.art.br/
Releia a entrevista Com Marília Nogueira para Abra:
http://abra.art.br/blog/2017/03/26/marilia-nogueira-e-o-protagonismo-feminino-no-premio-cabiria/
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Entrevista realizada por Melina Guterres, editora Rede Sina e associada a ABRA – Associação Brasileira de Autores Roteiristas, originalmente publicada em: http://abra.art.br/blog/2018/03/31/o-que-pensam-as-roteiristas-finalistas-do-premio-cabiria-isabella-poppe/