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Revellers from Beija-Flor samba school perform during the second night of the Carnival parade at the Sambadrome in Rio de Janeiro, Brazil February 13, 2018. The sign reads: " I want to study." REUTERS/Pilar Olivares

E as escolas de samba voltaram ao palco principal – BERNARDO PILOTTO

Ao entrarem na avenida com enredos politizados e críticos, as escolas de samba chamaram novamente a atenção como há muito não acontecia.

Paraíso do Tuiuti como segundo assunto mais comentado do twitter no mundo. Notas oficiais da Riotur e de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, respondendo ao conteúdo dos desfiles da Mangueira e da Tuiuti, respectivamente. Comentários sobre os desfiles para muito além das colunas e segmentos especializados. Enfim, fica difícil escolher qual é a melhor forma de mostrar que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro voltou a pautar a sociedade brasileira.

Quando falava-se, há cerca de 1 mês atrás, que poderíamos viver um “carnaval dos carnavais”,ninguém imaginava que pudéssemos chegar a tanto. Ao entrarem na avenida com enredos politizados e críticos, as escolas de samba chamaram novamente a atenção como há muito não acontecia.
Nas redes sociais, os desfiles e a apuração foram comentados para muito além da bolha do samba-enredo e muita gente se engajou na torcida por uma escola, especialmente pela Paraíso do Tuiuti.
Se, em 2017, o que marcou o desfile foram os acidentes e uma virada de mesa, o carnaval 2018 será lembrado pela politização explícita e também pela sua repercussão (escrevo isso no momento que ainda estamos sob o risco de uma nova virada de mesa que, a meu ver, não mudará o signo geral do que foi o carnaval de 2018). Poderá ser um marco na retomada do desfile das escolas de samba como algo marcante para o país, como aconteceu especialmente nos anos 1970 e 80.
É justamente aproveitando essa repercussão que é importante colocarmos algumas questões (algumas mais históricas e outras mais específicas sobre 2018) sobre as escolas de samba, os desfiles e o carnaval:

1) Não é só quando fazem críticas sociais explícitas que as escolas de samba estão fazendo política. Como bem apontou Luise Campos, da Rádio Arquibancada, “são política os fazeres da folia, a dimensão comunitária, a perpetuação de saberes ancestrais, a expressão da identidade cultural de um negro. É política a expressão de corpos que se negam a servir somente ao trabalho e à exploração do capital e se libertam no sambar, no cantar e no batucar”. As escolas nasceram por isso e para isso. Foram desde sempre espaços de confluência comunitária, de recriação de laços perdidos após a experiência da diáspora;

2) As escolas de samba se pronunciam em diversas gramáticas. Além da gramática normativa oficial (essa que todos nós lemos e falamos) elas também se utilizam, por exemplo, de uma gramática dos tambores. Isso acontece quando as batidas de caixa das baterias das escolas de samba homenageiam orixás. É o caso da maior parte das baterias das escolas de samba mais antigas, como Portela e Mangueira. No caso da azul e branco de Oswaldo Cruz, sua batida é inspirada no agueré de Oxóssi. Portanto, mesmo quando a Portela desfilou com enredos baseados em fatos da história oficial (“Seis Datas Magnas”, “Motivos Patrióticos”, “Riquezas do Brasil”, “Legados de D. João VI”, entre outros), ela apresentou durante seu cortejo também a afirmação da cultura negra. É possível ir mais além: podemos dizer que a Portela só apresentou enredos oficiais para também poder bater tambor para seu orixá sem repressão da polícia;

3) As escolas de samba funcionam numa lógica própria. Segundo o compositor e jornalista Luiz Carlos Máximo, “as escolas de samba não foram criadas, não se organizam, não se manifestam e não são dirigidas da mesma forma que partidos, sindicatos, movimentos e correntes políticas. Analisá-las dentro dessa caixa vai dar ruim. Porque elas não estão nessa caixa. Sem mérito ou demérito. Só não estão.”;

4) Umas dessas lógicas de funcionamento é a negociação. As escolas sempre buscaram a negociação com os poderes de diversos âmbitos, como o poder público, o tráfico, as igrejas, o jogo do bicho. A negociação é a forma que as escolas encontraram para resistir e existir. Foram raros os momentos em que elas bateram de frente. Partiu das escolas, por exemplo, a ideia de exaltar temas nacionais nos desfiles. Foi o mecanismo que as escolas encontraram para buscarem legitimidade e para serem aceitas;

5) Em sua maioria, as escolas de samba não bateram de frente com o poder público nem na época da ditadura civil-militar. Escolas como a Unidos do Cabuçu, Santa Cruz e Mangueira (em 1971), a Paraíso do Tuiuti, a Imperatriz Leopoldinense e a Unidos de Lucas (em 1972), o Império da Tijuca (em 1973), a Tupy de Brás de Pina (em 1975) e a Mocidade Independente (em 1979) apresentaram enredos que, além do teor nacionalista já costumeiramente usado nos desfiles, exaltaram “glórias” dos governos militares.
Mas quem acabou se notabilizando por este tipo de enredo no período e ganhando a fama foi a Beija-Flor de Nilópolis, que chegou a ser apelidada de Unidos da Arena. Isso porque ela apresentou enredos elogiosos aos militares em três carnavais seguidos (1973, 74 e 75) e também porque vários diretores e presidentes da escola ocuparam cargos públicos (vereadores, prefeitos, deputados) pela ARENA, partido que sustentava o regime.
Ainda assim, as escolas de samba foram alvo de espionagem por parte dos aparatos de repressão, como tem sido recentemente revelado;

6) Mas, como quase tudo que envolve as escolas de samba, há contradições na história da Beija-Flor. Em 2003, por exemplo, a escola apresentou o enredo “O povo conta a sua história: Saco vazio não para em pé. A mão que faz a guerra faz a paz” em que falava sobre o combate a fome, principal pauta daqueles primeiros meses do governo de Lula da Silva.
A Beija-Flor também é uma escala com muita presença comunitária e popular. É, certamente, a escola que tem mais moradores do seu entorno entre seus desfilantes. É também uma escola muito profissional na elaboração de seu carnaval, com ensaios longos e que fazem com que dificilmente a escola perca pontos nos chamados quesitos de chão (mestre-sala & porta-bandeira, bateria, harmonia e evolução). Vale ainda registro que a escola mantém praticamente a mesma equipe de carnaval desde 1976;

7) Ainda que se insista em dizer o contrário e que elas ainda sejam vistas como uma arte de segundo escalão, escola de samba é coisa muito séria. Enquanto estamos avaliando e debatendo o carnaval de 2018, a maior parte delas já está trabalhando no desfile de 2019. Um exemplo deste trabalho é a elaboração dos enredos: em meados de abril as escolas começarão a anunciar seus enredos e logo na sequência serão divulgadas as sinopses deles, mostrando qual é o norte que a agremiação procura para aquele tema. A partir daí, os compositores poderão escrever os sambas, que passarão ainda por disputas nas quadras para ver qual será o hino que a escola vai levar para a avenida. Em algumas escolas, chegam a ser apresentados mais de 20 sambas concorrentes para um carnaval. O trabalho de composição acontece ao mesmo tempo que a parte estética vai sendo feita; neste trabalho, estão envolvidos centenas de trabalhadores, como os carnavalescos, figurinistas, desenhistas, artesãos, costureiras, etc.

8) Em muitos casos, as sinopses são construídas com base em referências bibliográficas, em inspiração em livros, etc. Mas é sempre bom lembrar que um desfile de escola de samba não é uma tese acadêmica. Não há, portanto, necessidade de que todos os itens citados nas referências de uma escola apareçam no carnaval;

9) O enredo é definido conjuntamente entre o carnavalesco e a direção da escola. Além das ideias do carnavalesco em si, entram em avaliação algumas características das escolas. O Salgueiro, por exemplo, tem tradição em enredos com a temática afro; a Imperatriz se notabilizou em enredos históricos; a União da Ilha trouxe temas leves e divertidos em muitas ocasiões para a avenida e assim sucessivamente;

10) Ao longo dos anos, as escolas de samba cariocas cumpriram papel fundamental para contar aspectos e personagens de nossa história que são pouco explorados em nosso ensino formal. Foi assim com os desfiles sobre Zumbi (que apareceu pela primeira vez na exibição do Salgueiro em 1960), o Xingu (enredo da Mocidade em 1983), Teresa de Benguela (enredo da Viradouro em 1994), as candaces (enredo do Salgueiro em 2007), Carolina de Jesus e João Candido (enredo da Renascer de Jacarepaguá em 2017), Luisa Mahin (enredo da Alegria da Zona Sul em 2018), entre tantos outros;

11) O carnaval de 2018 não foi o primeiro a ter críticas políticas explícitas. Em 1961 a Tupy de Brás de Pina denunciou a seca no nordeste. Em 1969, com o Império Serrano e em 1972, com a Vila Isabel, a liberdade foi cantada na avenida, em plena ditadura. Tal tipo de enredo marcou também os anos 1980, especialmente a partir da Caprichosos de Pilares e da São Clemente, mas não só delas; em 1986, por exemplo, a União da Ilha incluiu o FMI nas assombrações de que falava seu enredo;

12) A atual crise econômica tem feito bem ao desfile das escolas de samba, pelo menos no quesito enredo (e, por consequência, também no quesito samba-enredo). Isso porque secaram os patrocínios de empresas e de cidades/estados, fazendo com que as escolas saíssem de uma zona de conforto e buscassem outros temas para seus enredos. De 2016 para cá, tivemos mais enredos sobre lendas indígenas, religiosidades afro-brasileiras, personalidades de fora do mainstream, etc;

13) A vitória da Beija-Flor em 2018 é bastante contestável. Mas não porque ela é uma escola que apoiou os militares, é da Globo, compra os jurados ou algo do tipo. O primeiro lugar da escola de Nilópolis merece contestação porque a escola apresentou um conjunto frágil de alegorias e fantasias e porque trazia um enredo bastante confuso. A escola até chegou a perder pontos nesses quesitos, mas de forma muito tímida;

14) Mas esse não é o primeiro título a ser questionado. Em muitas vezes, a própria Beija-Flor reclamou da perda injusta de pontos. Um dos motivos para isso é a falta de critérios para a escolha dos jurados. Muitas vezes, esses jurados têm pouquíssima ligação com o mundo das escolas de samba. Em 2017, a União da Ilha foi penalizada no quesito samba-enredo pois seu samba possuía muitas palavras africanas. Acontece que o enredo da escola naquele ano era sobre uma… lenda do povo banto;

15) Há ainda outros 2 pontos importante para pensarmos o carnaval de 2018, que tem a ver com a conjuntura de polarização política que vivemos no Brasil.

Primeiramente, é preciso explicitar que não existe o quesito “qualidade da crítica política”. Logo, a Beija-Flor não foi avaliada por ter sido mais à direita ou mais à esquerda. Em minha visão, ela apresentou um combinado de críticas de tudo que é forma. Foi, neste sentido, parecido com o que vimos nas ruas do Brasil em junho de 2013. Mas esse ponto exatamente não estava em análise.
O segundo ponto é que não nos serve para a análise do desfile desse ano o encaixe dele na narrativa coxinhas x petralhas (ou golpe x impeachment). Ainda que esta polarização explique muita coisa em nosso país, ela não serve para tudo. Mas, infelizmente, vimos muita gente tentando contrapor a Paraíso do Tuiuti com a Beija-Flor nesta perspectiva. Já que a Tuiuti representaria os petralhas, por ter trazido uma crítica explícita à reforma trabalhista de Temer, haveria de ter alguém representando os coxinhas no desfile. E para este papel foi escolhida a Beija-Flor. Essa polarização é errada e não tem repercussão para além das nossas bolhas virtuais. No Desfile das Campeãs, no sábado após o carnaval, por exemplo, muita gente gritou é campeã para a Tuiuti e aplaudiu o desfile da Beija-Flor.
Feitos esses apontamentos, creio que o leitor já percebeu que o mundo das escolas de samba guarda muitas surpresas, lógicas próprias, contradições, histórias e que, por isso mesmo, é fascinante. Que o interesse de 2018 venha pra ficar e que tenhamos novamente uma ocupação das escolas de samba e dos desfiles, como vimos nas décadas de 1970 e 80.

Bernardo Pilotto nasceu em fevereiro de 1984, poucos dias antes do Sambódromo carioca ser inaugurado, numa maternidade a 2km da Praça da Apoteose. É sociólogo, amante do carnaval e folião. Assistiu o desfile na Marques de Sapucaí em 18 dos seus 34 anos de vida. Na infância, via com curiosidade seus pais irem assistir aos desfiles, acompanhados de amigos e parentes. Quando tinha 9 anos, foi ao seu primeiro desfile, justamente no ano que o Salgueiro sacudiu e contagiou toda cidade com seu refrão inesquecível. Aos 10 anos, foi morar em São Paulo e depois em Curitiba. Sua paixão pelo carnaval permaneceu e, desde 2006, vai ao Rio de Janeiro para assistir o desfile e acompanhar os blocos de rua. Atualmente está retornando ao Rio de Janeiro. Participou recentemente do Especial de Carnaval do Portal Esquerda Online e tem também outros textos escritos sobre o carnaval em blogs e sites. 

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