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O fio da navalha nosso e de cada dia (entre a sanidade e a loucura) | por Cátia Simon

No início do mês de abril, a convite da escritora Jane Souza, participei da mesa de lançamento da sua novela Ella, na livraria Bamboletras. Inicialmente foi publicada na forma de folhetim, na Revista Parêntese. Integra a coleção narrativas-portoalegrenses, sob a coordenação geral do professor Luís Augusto Fischer, parceria da Editora Coragem e do Grupo Matinal Jornalismo.

Aceitei imediatamente o convite, mesmo sem ter lido o livro. Conheço a escritora desde a época da universidade, sabia que vinha coisa boa dali. Fomos colegas na SMED onde ela publicou, junto com a Ana Zatt, o Mapas da Cidade – autoria, identidade e cidadania, trazendo textos dos alunos e das professoras que proporcionaram as trocas entre as duas comunidades escolares a que pertenciam. Foi um bonito exercício de consciência cidadã.  Ano passado, lançou seu primeiro romance na Feira do Livro, dando início ao talento de escritora já evidenciado naquele tempo da faculdade. Fui monitora do professor Paulo Coimbra Guedes, na disciplina de redação, e ele dizia que a Jane tinha o melhor texto narrativo da época. Guardei isso e pude comprovar o quanto ela é hábil e certeira na escrita. E mais, um pouco bruxa. O canto da sereia nos dá alguns nós durante a leitura.

O livro está organizado em dez capítulos, trazendo questões levantadas pela personagem principal, Ella. Os questionamentos são feitos em uma linguagem que junta o espanhol e o português, lembrando que Jane tem formação em língua espanhola. Os capítulos iniciam com a seguinte indagação: “Resistiré…(al dilúvio), (al Che…), (ao melhor pôr do sol da cidade…), (a uma hermana argentina) e outros, amarrando o desvelamento da aventura vivida pela protagonista.

A história toda acontece em meio à pandemia do coronavírus, e Ella sucumbe à pressão psicológica, tenta o suicídio no Dilúvio. Isso é dado já no início da novela. A escritora trabalha o tema da saúde mental, mostrando o fio da navalha que demarca o campo da sanidade e da loucura. É comovente o esforço que a personagem Ella faz para se manter no controle da sua vida e da boa saúde mental. Os monólogos interiores, em contraste com as ações de especialistas da área da saúde, por exemplo, levam-na a divergir do diagnóstico de bipolaridade que lhe impingem. Lá pelas tantas, conclui  que “deveria se submeter às regras daquele lugar para livrar-se o quanto antes dali”.

A personagem abre e fecha vários parênteses imaginários trazendo personagens, textos literários, músicas, imprimindo um tom de Almodóvar na narrativa. Somos tomados por uma imensa empatia por Ella, pois que, em meio à luta interior para exteriormente parecer normal, esbanja ternura, solidariedade e dignidade. Não bastando todos os desafios, próprios de um hospital psiquiátrico, surge Lenora, a argentina, como mais uma pedra no sapato de nossa heroína. Decifre, você leitor, leitora, esse imbróglio.

Jane Souza trabalha o tema da saúde mental de maneira corajosa e sensível à sua complexidade. Finalizamos a leitura refletindo sobre os parâmetros da dita normalidade e também com saudade de Ella, como os bons livros nos fazem sentir.

 

Cátia Castilho Simon

Doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS

e escritora.

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