TODO DIA
Tem um poema na esquina
Na bolsa que gira
Tem um poema na louça suja
No jantar mais frio que carne crua
Tem um poema na mãe,
Na menina, na idosa
Tem um poema atravessando
O tempo
Tem um poema quebrando silêncios
Tem colheres sendo usadas
Tem uma nova sopa
Um sal ação
Uma mulher fazendo o próprio pão
Tem uma legião
Um país em mãos
Um Cristo morto na esquina
Todo dia um número ressuscita
Do pó à capa de notícias
Todo dia uma mulher é vítima
Um novo tempero soluça, implora, grita:
Empatia!
Está servido o jantar?
ORAÇÃO DA MULHER
Que eu possa estar sempre atenta
A todo mal que possam me fazer
De ordem física e emocional,
No meu trabalho, nos meus relacionamentos, na rua, nos bares, baladas, metrôs, ônibus, táxis, espaços públicos e privados.
Que eu possa estar.sempre informada, com a auto-estima elevada para perceber a tempo
mansplaining, manterrupting, bropriating, e gaslighting que possa vir estar acontecendo comigo ou com outra mulher.
E que esteja forte o suficiente a ponto de interrompê-los e “meter a colher”.
Que eu nunca esqueça que para os abusos de ordem moral, psicológica, patrimonial, física, sexual há a Lei Maria da Penha.
Que eu não caia no discurso do vitimismo masculino e entenda que a cultura de culpar as mulheres é mais antiga que a mim mesma.
Que eu jamais me despreze ou culpe a mim ou outra mulher por sofrer abuso de qualquer natureza.
Que esteja consciente que possivelmente julgamentos pelo meu gênero seguirão até o dia de minha morte, mas que eu nunca silêncie sobre a injustiça que vivemos em meu tempo.
Que eu consiga ter cada vez mais discernimento sobre as culpas que são e as que nunca foram minhas afim de que eu mesma, minha geração e as futuras possa viver de forma mais humana e equilibrada.
Que eu lembre sempre que se o mundo nos divide como mocinhas ou vilãs, nunca esqueçamos que somos deusas e irmãs.
Que na minha luta, encontre outras mulheres que cerquem outras mulheres e construam juntas uma corrente de cuidado, zelo e proteção.
Que a nossa voz, a nossa luta sejam o nosso escudo.
Que possamos compartilhar nosso aprendizado
Orar, vigiar e se proteger desse sistema patriarcal, abusivo e machista.
E despertando-nos,
despertemos muitos outros.
Chega de silêncios!
DONA DE MIM
Não nasci pra ser “amada”
Ser troféu de estante
Apresentada pra família adorada
Não nasci pra ser controlada,
Regulada,
boicotada.
Não nasci pra dar prazer.
Nem ouvir sobre meu vestido,
a cor do meu cabelo e
tampouco o que eu digo.
Tenho alma avançada,
Se quiser pode caminhar ao lado,
nem em cima, nem embaixo.
Calma, doce, cara de princesa?
Quanto espetáculo, muito midiático!
No fogão, no caldeirão, no navio, avião,
não importa onde,
ela sempre prepara a poção mágica
da desconstrução.
Não é bruxa nem princesa, é heroína, meu caro!
Se és bicho controle seu instinto,
se a cultura te absorveu,
o problema não é meu.
Meu passo é mais livre que de qualquer pássaro.
Qualquer tentativa de controle é sempre humilhante,
um fiasco.
Sou dona de mim.
Se te pareço propriedade,
melhor apressar o passo,
que a espingarda tá no braço.
Odeio simplesmente odeio mil vezes qualquer tentativa de enlatamento.
Sou muito maior que um velho enquadramento.
Lamento..mas..
Se você não é um ser que avançou no tempo,
“Fora daqui” !
Porque “ser amada” do “teu” tempo é “ser abusada”.
Não! E nem muito obrigada!
NÃO PRECISAMOS
Não não precisamos
ser mãe de quem não é filho
ser mães de maridos, namorado, companheiros, amigos
Não, não precisamos
ser tolerante com a loucura alheia
Não precisamos
ser amáveis, queridas, simpáticas
não somos anjos da guarda, virgens Marias, tampouco Jesus cristo
Não precisamos
ser princesas, rainhas, ideais de esposas, namoradas
Não precisamos ser a mais bonita, a mais descolada, careta, recatada,
estudiosa, bem sucedida,
Não precisamos ser ideais de filhas, netas adoradas
Não nascemos para agradar
nesse mundo que nos agride
nascemos para aprender a nos amar
ENGASGOS
Hoje meu poema tá engasgado
Na cegueira alheia
Na falta de noção
No senso comum
Sem apuração
Hoje meu poema engoliu a saliva
Silénciou, passou fome,
frio, invejou nações onde democracia não é comida de leões.
Hoje meu poema cuspiu fogo!
Sentiu o véu do passado,
feito alvo no corpo do cidadão,
80 tiros em Evaldo, Agatas, Marielles, Marias e Joãos.
Hoje meu poema morreu na esquina,
Com a Carol, Mana, Verônica e toda mulher trans, mulher cis assassinada
na censura ao artista, na falta de recurso,
na educação retrógrada,
na tal pós verdade escandalosa,
na boca do ministro que acha que entende de nazismo mais que alemães,
nas convições de um ex-juiz que faz social com a burguesia pedindo aprovação de uma previdência escravagista,
no ódio que eles declamam aos jornalistas.
Nesses “heróis” de momento,
erguidos por interesses,
sustentados pela falta de discernimento de um povo sem o hábito de leitura.
Hoje meu poema se engasgou.
MARIELLE
Mulher negra da Maré,
Socióloga, guerreira, política
Fez da voz sua guerrilha
Marielle que luta tão bonita
Alimentou almas tão famintas
E partiu assim…
Brutalmente assassinada, executada!
Por acreditar em nós!
As mulheres têm sede de justiça
Marielle sua voz, vem e fica!
Não vamos te esquecer!
Não vamos nos calar!
Teu corpo tiraram de nós,
Tua luta seguirá…
Na nossa voz!
OS FATOS
Na Sexta-Feira Santa, 18 de abril de 2025, o Rio Grande do Sul enfrentou uma onda de violência alarmante, com seis feminicídios registrados em menos de 24 horas. As vítimas foram assassinadas por ex-companheiros ou parceiros atuais, evidenciando a persistência da violência de gênero no estado.
Em São Gabriel, Juliana Proença Luiz, de 47 anos, foi morta a facadas na frente da filha de seis anos. Em Viamão, a técnica de enfermagem Patrícia Viviane de Azevedo, de 50 anos, foi assassinada com um tiro na cabeça. Em Parobé, Caroline Machado Dorneles, grávida de três meses, foi morta a facadas. Em Feliz, Raíssa Muller, de 21 anos, e seu namorado foram mortos a facadas por ciúmes do ex-companheiro de Raíssa. Em Santa Cruz do Sul, Simone Andrea Meinhardt, de 49 anos, foi assassinada a facadas. Em Bento Gonçalves, Jane Cristina Montiel Gobatto, de 54 anos, foi morta com golpes de faca no pescoço.
Esses casos refletem a necessidade urgente de fortalecer as políticas públicas de proteção às mulheres e de promover o letramento sobre a violência de gênero. É essencial que a sociedade reconheça os sinais de abuso e que as vítimas tenham acesso a medidas protetivas eficazes. A educação sobre o respeito e a igualdade de gênero deve ser uma prioridade para prevenir futuras tragédias.
Mel Inquieta (Melina Guterres)
Jornalista, produtora cultural, CEO e fundadora da Rede Sina.
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