10 POEMAS DE ADRIANE GARCIA

AS FORMAS PERFEITAS   Em sístole e diástole Meu coração vai e vem Expande e retorna   Uso essa imagem muitas vezes Pois ela ainda se repete Em mim   Feito água-viva Em luminescência Um pulmão   Que recebe e doa Que doa e recebe Que puxa e repuxa   Algo em mim preso Não a água-viva Que pulsa em balé.       TEMPESTADE NO AMIANTO   Um dia eu vi uma tempestade De vento se armando De promessa de chuva Grossa   De promessa de gelo Em blocos Destruindo carros e Janelas   Vi as árvores balançando Entre trovoadas e raios E o céu escurecendo Como se fosse uma noite   Um dia eu vi a tempestade Destruindo o telhado De minha casa Machucando   A cabeça de minha mãe Um dia eu vi Ensanguentada E era púrpura, vermelho   Vi a tempestade e fui Para o meio dela Dizer que eu não tinha Mais medo.     ADIAMENTO     Teremos que deixá-la para amanhã A tristeza Porque há muito a fazer e quando terminarmos Haverá o que fazer de novo   Teremos que continuar varrendo para debaixo do tapete A tristeza Porque ela paralisa e sentimos Que será preciso usar as mãos   Teremos que renunciar, fazer de conta que ela não existe A tristeza Porque ela é desagradável E os outros nos esperam   Teremos que sorrir, afagar, encontrar e dissimular A tristeza Porque a alegria é a sua prima falsa E está nos gritando da rua.     DOCE COMO O ALGODÃO DOCE   O homem do algodão doce passa carregado de açúcar As cores suaves – não me importo se são feitas de anilina Passa e eu sei porque toca a buzina anunciando: Sou o homem do algodão doce e estou passando na sua rua   Não corro pois não tenho mais cinco anos Nem meu pai está aqui para que eu peça que compre A nuvem rosa, a nuvem azul, a nuvem amarela Ou mesmo me dirá: hoje não posso, filha   Ouço a buzina se afastar e com ela O homem que talvez não seja doce O homem que talvez também diga a alguém: Hoje não posso, filha.         PASSEIO NA LAGOA   Dia desses um homem disse que Não tem problema as morsas caírem Das montanhas Que elas vão se adaptar até Aprenderem a escalar pedras   Ele acha que isso pode ser feito em Dez minutos, dez dias, dez anos Ele prefere crer que nada é afetado Se ele faz escolhas erradas Se a necrópsia dos patos Revela onde ele joga o plástico.     UM DEUS PARA CHAMAR DE SEU   Eu peço Ele atende Gênio da lâmpada Infinitos desejos   Passo oração no débito Crédito Ou boleto bancário   Eus no comando.         PANFLETÁRIA   Uma poesia que possa vir em um panfleto Aquecido pelas mãos de uma trabalhadora Que lê Brecht   Que possa ser colada nos postes Como um cartaz de Vladimir Maiakovski   E que na ventania das seis horas da tarde Voe sobre a Estação de Metrô A ponto de o maquinista perguntar Quando foi que libertaram os pássaros.       PARAR A MÁQUINA   Trabalho de frente para a janela e fecho as cortinas A luz promete o que não entrega Dou a César o que é de César Mas também preciso de moedas   É minha a teia e agora é tarde Não cabe sequer me arrepender Das ingenuidades que não me acompanham mais: A de desejar um passado que desse na porta certa   O mundo segue em julgamento e tons de guerra Continuo me distraindo com ipês em florescência Quero servir ao cão na rua, à família e a sua esmola mas Sou pouca, um dia de cada vez (mal tenho servido a mim mesma)   Meu amigo está enlouquecido, palavras de ordem Se for somente para ficar rouca, nem quero Um minuto de inércia, por favor, no planeta inteiro E por um minuto, pela primeira vez, o mundo estaria a salvo.     CUIDADO   Não tenho falado desta tristeza que assola a terra Porque tenho medo de que a semente que plantei Escute   E ao que nasce É preciso dar alguma esperança.     ADRIANE GARCIA Poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020). *** Confira também o que a nossa colunista Maria Alice Bragança fala sobre uma das obras da autora: https://redesina.com.br/estreia-coluna-estante-da-alice-livro-eva-proto-poetica-de-adriane-garcia/ Please follow and like us: Comente comentários